Marco Milani
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A Doutrina Espírita parte do princípio de que a verdade espiritual é acessível a todos e não depende da tradição particular de um povo ou de um continente, mas sim da capacidade de análise racional e moral de qualquer ser humano. A cultura de Kardec serviu como veículo para a sistematização, mas o conteúdo, oriundo dos Espíritos, transcende os limites históricos e geográficos de sua codificação.
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O crescimento da influência do pensamento decolonial em algumas áreas das ciências humanas tem levado a tentativas recentes de aplicar suas categorias críticas ao Espiritismo, buscando reinterpretar a doutrina codificada por Allan Kardec a partir de paradigmas associados à descolonização do saber. Essa aproximação, embora por vezes bem-intencionada, revela uma profunda incompreensão epistemológica sobre a natureza do Espiritismo, tanto em seus fundamentos, quanto em sua proposta metodológica.
Enquanto o pensamento decolonial se estrutura como uma crítica à hegemonia do conhecimento ocidental e às relações de poder que se expressam nas formas de produção e validação do saber, o Espiritismo nasce, ao contrário, como um projeto de emancipação racional do pensamento religioso e místico, fundado em princípios universais e em método experimental.
A proposta central da teoria decolonial, como a própria denominação sugere, é questionar a colonialidade do poder, do saber e do ser, buscando valorizar epistemologias “do Sul”, saberes oriundos de tradições não ocidentais, e formas culturais historicamente marginalizadas (Mignolo & Walsh, 2018). No entanto, ao se tentar aplicar essa matriz crítica ao Espiritismo, incorre-se em um equívoco fundamental: confundir o universalismo da razão com etnocentrismo europeu.
O Espiritismo, conforme delineado por Kardec, não é um sistema ideológico de domínio cultural, mas uma filosofia de base científica que busca compreender as leis universais da vida espiritual a partir da observação dos fenômenos e do exame racional das comunicações dos Espíritos. Não se trata, portanto, de um saber imposto pelo Ocidente sobre outras culturas, mas de um esforço para construir um conhecimento verificável, passível de ser reproduzido e criticado por qualquer pessoa, em qualquer lugar, independentemente de sua origem cultural. Como afirma Kardec (2008), “o Espiritismo é uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos e de suas relações com o mundo corporal”, e sua validade independe do local de onde se manifeste.
Kardec, sendo francês e atuando no século XIX, estava obviamente imerso na cultura europeia e servia-se da linguagem, códigos e valores típicos de seu tempo e espaço, para a expressão das ideias que organizava. No entanto, isso não compromete a proposta universal do ensino dos Espíritos, os quais, por sua própria natureza, não estão confinados nem geográfica nem culturalmente.
A Doutrina Espírita parte do princípio de que a verdade espiritual é acessível a todos e não depende da tradição particular de um povo ou de um continente, mas sim da capacidade de análise racional e moral de qualquer ser humano. A cultura de Kardec serviu como veículo para a sistematização, mas o conteúdo, oriundo dos Espíritos, transcende os limites históricos e geográficos de sua codificação.
A tentativa de reinterpretar o Espiritismo sob uma ótica decolonial frequentemente se apoia em três premissas equivocadas: a primeira é a suposição de que a doutrina representaria uma apropriação eurocêntrica de saberes espirituais ancestrais, apagando sua diversidade; a segunda, que haveria uma homogeneização da experiência espiritual em moldes racionais e cientificistas; e, a terceira, que o Espiritismo teria se alinhado historicamente a projetos de poder colonial, direta ou indiretamente. Autores como Pereira (2023) têm sugerido que o Espiritismo, ao sistematizar saberes espirituais em linguagem científica ocidental, teria silenciado vozes não europeias e espiritualidades autóctones. Contudo, nenhuma dessas ideias se sustenta à luz de uma análise objetiva das fontes primárias da doutrina. Kardec deixou claro, em diversas ocasiões, que seu papel foi o de organizador e sistematizador de um conjunto de manifestações espirituais que ocorriam em diferentes países, sob variadas formas. Ele não reivindicou para si a autoria das ideias, mas o mérito de aplicar um critério racional e metódico para discernir, entre as mensagens mediúnicas, aquelas coerentes com os princípios universais de moral, lógica e progresso. A autoridade da doutrina está, justamente, no método utilizado para a sua elaboração (Kardec, 2003).
O Espiritismo, ademais, jamais se propôs como instrumento de homogeneização cultural. Pelo contrário, ele reconhece a pluralidade de pensamentos, a diversidade das experiências espirituais e a dinamicidade das sociedades. A moral espírita, embora baseada em princípios universais como justiça, amor e caridade, é aplicada de modo relativo ao contexto cultural, histórico e evolutivo de cada povo. Kardec não negou o valor dos saberes tradicionais, mas defendeu que o critério para validar qualquer conhecimento deve ser sua coerência com a razão, a experiência e a moral universal.
A intenção de opor a racionalidade à ancestralidade, como fazem alguns autores decoloniais, constitui uma falsa dicotomia, pois o Espiritismo não exclui, como mencionado, os saberes ancestrais, mas os examina sob um prisma crítico, livre de dogmas e imposições. Como observa Kardec (1996), “todo ensino metódico deve partir do conhecido para o desconhecido”, reforçando o respeito às ideias particulares.
A suposta associação do Espiritismo com o colonialismo carece de qualquer base histórica concreta. Ao contrário, muitos dos primeiros espiritistas foram ativistas da abolição da escravatura, defensores da educação popular, do direito das mulheres e da liberdade de expressão. O Espiritismo se propagou no Brasil, por exemplo, entre intelectuais e setores que viam na doutrina uma forma de resistência ao clericalismo e ao obscurantismo. A Doutrina Espírita não se fez cúmplice do projeto colonial, mas antes ofereceu uma via alternativa de emancipação moral e intelectual baseada na liberdade de pensamento, na responsabilidade individual e na perfectibilidade do ser.
Além disso, aplicar categorias contemporâneas como a de colonialidade do saber ao contexto de formulação do Espiritismo no século XIX incorre em anacronismo metodológico, desconsiderando a especificidade histórica e o projeto científico que movia Kardec, conforme salientado por Koselleck (2006) ao advertir contra a projeção de conceitos modernos sobre realidades passadas.
A intenção de aplicar categorias decoloniais ao Espiritismo fracassa em respeitar a singularidade epistemológica e histórica da doutrina. Ao imputar-lhe um suposto eurocentrismo, ignora-se que a universalidade proposta por Kardec não é imposição cultural, mas busca de leis gerais que possam ser compreendidas e verificadas por todos. Reduzir o Espiritismo a um produto da colonialidade é negar sua natureza científica, sua proposta moral universal e seu compromisso com a liberdade de consciência. Assim, em vez de reinterpretá-lo sob categorias exógenas, é mais coerente estudá-lo com base em suas próprias premissas, em diálogo crítico, mas respeitoso, com sua proposta original de conhecimento, moralidade e transformação espiritual.
Fontes:
Kardec, A. (2003). “O evangelho segundo o Espiritismo”. Editora LAKE.
Kardec, A. (1996). “O livro dos médiuns”. Editora EME.
Kardec, A. (2008). “O que é o Espiritismo”. Federação Espírita Brasileira.
Koselleck, R. (2006). “Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos”. Contraponto/EdUERJ.
Mignolo, W., & Walsh, C. (2018). “On decoloniality: Concepts, analytics, praxis”. Duke University Press.
Pereira A. S. (2023). “Notas para um Espiritismo Decolonial”. FAK. Disponível em <https://www.faknet.org.br/wp-content/uploads/2023/01/Notas-para-um-Espiritismo-Decolonial_Versao-Final.pdf>. Acesso em 4. mai. 2025.
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Edição: Maio de 2025
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A universalidade do Espiritismo frente às abordagens decoloniais, por Marco Milani
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