Sandra Fiore
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A mulher era vista como submissa e restrita ao lar, sem direitos, uma visão que persiste sutilmente e contribui para a violência contra a mulher, como evidenciado pelos feminicídios.
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Uma estátua foi exposta em Nova York, em frente ao Tribunal de Justiça, onde aparece uma Medusa carregando a cabeça decapitada de Perseu – uma inversão do mito que data de séculos. Quem conhece a história mitológica sabe que Medusa foi amaldiçoada injustamente, tendo os cabelos transformados em serpentes, passando a transformar pessoas em estátuas. Foi banida, morta e decapitada por Perseu.
Esta estátua é um símbolo de justiça, representando um personagem e as inúmeras “Medusas” da vida real que sofrem o mesmo destino por falta de equidade no mundo, às vezes pelo simples fato de serem mulheres consideradas frágeis. Quando se trata de mulheres negras, essas injustiças são ainda mais intensificadas. Não se trata de vingança, mas de reflexão, pois o papel da arte é justamente provocar questionamentos.
O Dia Internacional da Mulher, celebrado em 8 de março, surgiu da luta histórica das mulheres contra perseguições e discriminações. Apesar das conquistas sociais, a busca por dignidade e igualdade de direitos com os homens continua sendo um desafio importante, visando a uma parceria, em vez de superioridade. Historicamente, a mulher era vista como submissa e restrita ao lar, sem direitos, uma visão que persiste sutilmente e contribui para a violência contra a mulher, como evidenciado pelos feminicídios.
A Grécia antiga influenciou a humanidade no campo da filosofia, das artes plásticas, da arquitetura, do teatro, enfim, de muitas ideias e conceitos que deram origem às atuais ciências humanas, exatas e biológicas. Havia, no pensamento de muitos, a ideia de que a mulher não tinha o direito de ser amada porque considerada desprovida de alma, servindo apenas para procriar. Este pensamento é refletido nas ideias do filósofo Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), que via a mulher como algo pequeno e insignificante, como fica demonstrado nesta frase de sua autoria: “A fêmea é apenas um material, um ‘recipiente’, de modo que a verdadeira ‘alma’ ou ‘papel ativo’ é reservado ao macho”.
A história mostra que algumas mulheres se passaram por homens para conquistar seus sonhos, como o caso de Shabana Basij-Rasikh, ativista em prol dos direitos das mulheres e educadora afegã, cuja missão é empoderar mulheres através da educação, especialmente por meio da SOLA (School of Leadership, Afghanistan) em seu país natal. Shabana tinha 6 anos de idade quando o Talibã proibiu a educação feminina no Afeganistão, na década de 1990. Inconformada, durante cinco anos arriscou sua vida vestindo-se de menino para frequentar uma escola secreta, levando livros em sacolas de feira.
Tem sido árdua a batalha das mulheres para conquistar seu espaço na sociedade e derrubar tabus, garantindo respeito aos seus direitos e não apenas aos seus deveres. Hoje, perguntamos: quantos nomes de mulheres lembramos que foram importantes para a humanidade? Quantas cientistas, filósofas, pintoras, escritoras, jornalistas, antropólogas e sociólogas conhecidas deixaram seus nomes escritos para a posteridade?
No passado, mulheres escritoras e jornalistas, para terem seus trabalhos divulgados, usavam pseudônimos masculinos ou, se fossem cientistas, atribuíam a autoria de seus trabalhos a maridos ou irmãos, porque havia grande resistência em aceitar tudo o que vinha do chamado “sexo frágil”.
Quanto à hermenêutica evangélica, quando não se têm os devidos cuidados nas interpretações, cometem-se erros por não se buscar o espírito da letra, e isso vem contribuindo, ao longo dos tempos, para discriminar ainda mais a mulher. Isso ocorre, por exemplo, quando se diz que “a mulher foi criada a partir da costela de Adão”, sendo, portanto, ligada a ele em submissão. Quando foram expulsos do Paraíso por Deus, toda a responsabilidade foi atribuída a Eva por supostamente ter induzido Adão ao erro, e hoje as mulheres carregam nos ombros o peso da dor da humanidade pelo pecado original.
Há inúmeros dirigentes homens que, interpretando de forma equivocada o Velho Testamento, insistem que a finalidade da mulher é obedecer ao homem e servir como instrumento de reprodução. No Alcorão, livro sagrado do Islamismo, a mulher é vista da mesma forma, com o homem tendo o direito de usar a violência se ela não lhe obedecer. Ainda hoje, para os muçulmanos ortodoxos, a mulher não pode sair às ruas, pois corre o risco de ser presa, assim como não pode mostrar o rosto em alguns países do Oriente Médio.
Quando se tem contato com essa doutrina maravilhosa de cunho científico-filosófico, codificada pelo pedagogo Denisard Hypollite Leon Rivail [3], que depois passou a usar o pseudônimo Allan Kardec, percebe-se que ele, como pedagogo, com vários livros escritos em sua área acadêmica, deixou sua luz de mestre se apagar para deixar brilhar a luz da Doutrina Espírita. Podemos dizer que Kardec sempre teve um espírito científico, mas também recebeu influência benéfica dos grandes pensadores da época. Afinal, ele nasceu cinco anos após o término da Revolução Francesa, um marco histórico, quando filósofos contribuíram para mudar o pensamento da população, convencendo-a da importância da liberdade, em um contexto de monarquia absolutista simbolizada pela Bastilha, a primeira a ser derrubada.
Esse grupo de pensadores, denominados iluministas, defendia não apenas a liberdade econômica, política e religiosa, mas também trouxe luz por meio das ideias da época, defendendo o uso da razão. Hoje, a bela Paris é conhecida como Cidade Luz em razão deste movimento.
Tanto a ciência quanto a liberdade de pensar e agir, ideias desses filósofos, acabaram influenciando de forma considerável o pedagogo e depois codificador do Espiritismo, Allan Kardec. Ele deixou suas considerações em Obras Póstumas, no capítulo “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, lema da Revolução Francesa. Ao ficar diante dos fenômenos e estudá-los de forma sistemática, Kardec denominou sua obra de Doutrina dos Espíritos, sendo, portanto, um conjunto de conceitos filosóficos, científicos e religiosos, e não uma religião que normalmente tem como base uma fé religiosa dogmática. Essa doutrina nos ensina que somos todos iguais e assim fomos criados, simples e ignorantes. No entanto, mesmo assim, e sabendo que estamos ora em corpos masculinos, ora em corpos femininos, estão incrustadas na alma masculina, às vezes de forma inconsciente, ideias machistas. Isso faz parte da nossa aprendizagem e do nosso progresso.
Jesus valorizava as mulheres, que o seguiam em uma época de marginalização. Sua escolha por um corpo masculino foi para garantir o cumprimento de sua missão, pois, em um corpo feminino, seus ensinamentos poderiam não ter alcançado os corações. Maria Madalena, uma de suas discípulas, foi a primeira a ver Jesus ressuscitado e anunciar a Boa Nova.
A lei era rígida na época em que Jesus viveu. A mulher não podia andar sozinha, nem conversar com homens em ambientes sociais; elas eram quase invisíveis. Foi com Jesus que as coisas começaram a mudar, tanto que muitas delas passaram a segui-lo. Talvez isso explique o espanto da mulher samaritana no poço quando Jesus lhe dirige a palavra: “Como o senhor, sendo judeu, pede a mim, uma samaritana, água para beber?”. Seus discípulos se admiraram, porém era exatamente isso que o mestre queria: passar a lição de que somos todos iguais.
Há vários capítulos em que o autor Humberto de Campos, no livro Boa Nova, aborda Jesus e as mulheres; porém, em um deles, intitulado “A Mulher e a Ressurreição”, mostra a mulher com uma missão importante diante da humanidade, talvez pela sensibilidade que lhe foi dada por Deus por conta da maternidade. Humberto diz que o mestre se refere à mulher da seguinte maneira:
“[…] as mulheres mais desventuradas (pobre infeliz) ainda possuem no coração o gérmen divino (embrião) para a redenção da humanidade inteira.
“Seu sentimento de ternura e humildade será, em todos os tempos, o grande roteiro para a iluminação do mundo, porque, sem o tesouro do sentimento, todas as obras da razão humana podem parecer como um castelo de falsos esplendores.
“E será ainda à mulher que buscaremos confiar a missão mais sublime na construção evangélica dentro dos corações, no supremo esforço de iluminar o mundo.”
Isso prova que a mulher tem uma missão maior diante da humanidade, não apenas como ponte para gerar vida e dar oportunidade de receber Espíritos – a mulher traz no seu coração o sentimento materno e no seu ventre o destino da humanidade –, mas também a missão de preparar esses Espíritos, que estão chegando para se tornarem homens de bem, através da sua sensibilidade, do exemplo, do amor e da dedicação.
Embora ainda haja diferenciação no tratamento das mulheres, elas devem continuar lutando por seus direitos, sem esquecer os deveres. No movimento espírita, apesar da bagagem espiritual feminina, muitas não têm oportunidades, refletidas na predominância masculina em congressos e conferências. No maior país espírita do mundo, há muitas mulheres capacitadas, mas ainda pouco reconhecidas. Figuras notáveis, como Therezinha de Oliveira, Suely Caldas Schubert e Yvonne do Amaral Pereira se desenvolveram significativamente, assim como muitas outras. Nas casas espíritas, verifica-se que a maioria dos trabalhadores e frequentadores são mulheres, mostrando sua importância.
A distinção de gênero já não se justifica, pois todos têm um papel fundamental na humanidade.
Fontes:
Arte que acontece. “Estátua polêmica de Medusa é colocada em frente à corte que julgou Weinstein”. Disponível em: https://artequeacontece.com.br/estatua-polemica-e-colocada-em-frente-a-corte-que-julgou-weinstein/.
Cevesp. “Mulheres na política”. Disponível em: http://www.cepesp.io/por-que-ha-poucas-mulheres-na-politica-brasileira-5-perguntas-para-ivan-mardegan/.
Kardec, A. “Revista Espírita”. 1858.
Noronha, H. 7 mulheres que tiveram que se passar por homens para conquistar seus sonhos. “Universa UOL”. Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2018/09/22/mulheres-que-tiveram-que-se-passar-por-homens-para-conquistar-seus-sonhos.htm
Paulus. “Bíblia Sagrada”. Edição Pastoral, São Paulo. Gênese 3.
Xavier, F. C. “Boa Nova”. Pelo Espírito Humberto de Campos. Brasília: FEB, 2016. p. 145.
Notas do ECK:
[1] Artigo originalmente publicado na “Revista Internacional do Espiritismo – RIE”, A. 100, n. 7, edição de agosto de 2005, às páginas 343-345. Agradecemos à articulista e ao Editor-Chefe da RIE, Cássio Leonardo Carrara, nosso parceiro, a cessão de uso.
[2] A autora é artista plástica, com graduação em Filosofia. Palestrante e articulista espírita, integra a União Espírita Paschoal Grossi e a USE Intermunicipal de Araraquara, SP.
[3] Grafia correta do nome de batismo de Allan Kardec, conforme descobertas historiográficas recentes. Para mais informações, acesse: <https://www.comkardec.net.br/kardec-ainda-esse-desconhecido/>.
Imagem de Simp1e123 por Pixabay