A Justiça que Não se Compra, por Wilson Custódio Filho

Tempo de leitura: 6 minutos

Wilson Custódio Filho

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A morte talvez seja a única verdade democrática. Compreender que tudo faz parte de um processo natural e responsável: isso, sim, deveria tornar-nos mais leves.

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Introito

Diante do quadro social em que a desinteligência [A] está em voga, acordei reflexivo – e, na essência, despertei fúnebre. Sim, eu sei que assusta. Mas nem tudo são flores… Ou será que são? Se preferir a leveza, talvez este não seja o texto. Mas, se ainda lê, prossigamos.

Vivemos tempos em que o ruído se sobrepõe ao pensamento, e a superficialidade se disfarça de opinião. Nesse cenário, não importa teu conceito. Não falo contigo; na verdade, confabulo ideias comigo mesmo. Então, busco refúgio – não apenas nas palavras, mas no raro instante em que o consciente percebe sua própria inconsciência.

A morte, penso, tem sabor de justiça – independentemente do que se creia ou descrê: Paraíso, Nirvana, Valhala, Nosso Lar… Inferno, Purgatório, Umbral… O nome, o dogma, ou o paradogma [B] – o destino prometido – são irrelevantes. Nada, seja do mundo visível ou invisível, se sobrepõe à justiça da morte. Ela é o ponto de equilíbrio – a medida exata entre o que fomos, o que deixamos de ser ou o que pensamos ter deixado. 

Em um mundo onde tudo é disputa de narrativas, a morte permanece como a única certeza que não se curva a ideologias, crenças ou vaidades. Talvez, no fim, seja ela a única verdade democrática.

Uma constatação que, vez ou outra, merece ser lembrada. E é justamente aí que reside sua justiça. Compreender, de fato, que tudo faz parte de um processo natural – e que essa consciência nos aponta para a responsabilidade com outras vidas – isso, sim, deveria tornar-nos mais leves. 

Desde a Antiguidade – e mesmo antes dela – pensadores já refletiam sobre a urgência de viver bem diante da certeza da morte. 

Lembra-se? Alguns venderam, outros compraram indulgências. Ainda hoje, barganha-se com os céus e negocia-se com o inferno – como se a morte vestisse capuz e pudesse ser adiada por acordos espirituais. 

A naturalidade da morte

“Apressa-te a viver bem e pensa que cada dia é, por si só, uma vida.” – Sêneca [1].

“Chegamos à morte naquele momento, mas há muito tempo estamos a caminho.” – Sêneca [2].

Curioso como o estoico Sêneca, que enfrentava a morte com naturalidade, insistia na urgência de viver bem – como se o modo de viver fosse, em si, a única preparação possível para morrer. Há nisso um ponto de encontro com o pensamento espírita [3], com o qual comungo, não por conveniência, mas por coerência: não se trata de temer a morte, mas de viver em sintonia com o que se acredita sobre ela. E cá entre nós, falamos muito, vivenciamos pouquíssimo!

Talvez a morte nos desconcerte não por sua presença, mas pelo que ela revela sobre a forma como vivemos. Para compreendê-la melhor, é preciso encará-la em suas múltiplas faces: biológica, científica e espiritual.

A Morte Biológica

A morte, em sua face mais crua, é falência orgânica. Um colapso silencioso de sistemas que, por um tempo, sustentaram o milagre da consciência. O coração para, o cérebro silencia, as células entram em degradação. O ser pensante, por vezes cheio de planos, dissipa-se em processos químicos previsíveis. Ah, como isso – saber disso – nos mata!

Não há, em absoluto, nada de poético no rigor “mortis”, nem transcendência na decomposição. O corpo, antes templo de desejos e vaidades, torna-se matéria em retorno. A pele esfria, os músculos enrijecem, os órgãos apodrecem – naturalmente. A natureza, impassível, retoma o que emprestou.

É nesse momento que o desespero se apresenta: ao perceber que, biologicamente, somos apenas um ciclo entre nascimento e óbito. Mas talvez aí também resida uma forma de justiça – a da igualdade absoluta. Os restos mortais do rei, do mendigo, do santo e do corrupto – todos se desfazem sob as mesmas leis da biologia. A morte, nesse aspecto, não tem favoritos.

A Morte Científica

A ciência, com sua precisão e limites, tenta definir o instante exato em que a vida cessa. Mas, mesmo entre médicos e máquinas, a morte é um conceito escorregadio. É o fim da atividade cerebral? A parada cardíaca? A ausência de resposta neurológica? A ciência debate, redefine, recua. E enquanto isso, corpos são reanimados, cérebros são mantidos vivos por aparelhos. Nisso a linha entre a vida e a morte se mostra cada vez mais tênue.

Há quem veja nisso um avanço. Outros, um prolongamento artificial do inevitável. A medicina moderna, ao mesmo tempo em que salva, também posterga – e, às vezes, aprisiona. A morte, que antes era um evento, hoje pode ser um processo, uma negociação entre tubos, protocolos e decisões familiares.

A ciência, por mais que avance, ainda não encontrou cura para a finitude. Pode adiar, maquiar, desacelerar. Mas não pode impedir. E talvez, no fundo, nem devesse. Porque há algo de profundamente humano em aceitar que nem tudo pode ser controlado – nem mesmo a finitude.

A criogenia da vida repousa, inerte, diante da transitória busca pela eternidade humana.

A Morte Espiritual

Para alguns, a morte é apenas uma travessia. Um retorno, uma libertação, uma continuidade, em outra forma. Espíritos que seguem, consciências que despertam, essências que se desprendem do corpo, como quem muda de roupa.

Para outros, é dissolução. O fim do eu, o apagamento da identidade, o silêncio absoluto. E há ainda os que acreditam que nada acontece – que tudo termina ali, no último suspiro. Cada um à sua maneira, e a morte – silenciosa e certa – presente para todos, segue como ponto final ou recomeço.

A morte espiritual, em suas múltiplas vertentes, tenta dar sentido ao que escapa à razão. Reencarnação, céu, inferno, “karma”, juízo final… Cada crença constrói sua ponte sobre o abismo, seu arco-íris sobre o invisível. E mesmo entre os que se dizem certos do que virá, há medo – pois, no fundo, todos sabem dos limites da própria fé. Isto porque a morte, mesmo espiritualizada, continua desafiando até os mais convictos.

Mas há também vaidade espiritual. Há quem se ache mais preparado, mais evoluído, mais próximo da luz. Espíritas, religiosos, místicos – todos, em algum momento, podem se perder na ilusão de superioridade. E é aí que a morte, mais uma vez, se impõe como justiça.

Ela não distingue graus de iluminação. Não se curva a títulos de mentor, médium ou sacerdote. Se é que existe, talvez a morte espiritual seja isso: o desmonte do ego, o colapso da ilusão de controle sobre o invisível.

Mas somos teimosos: ainda não entendemos que a morte não negocia com títulos, não se curva a cargos ou encargos, não se impressiona com púlpitos, palácios, catedrais, centros espíritas, terreiros. Ela chega – cedo ou tarde – para os que se acham eternos, intocáveis, ungidos por alguma autoridade divina ou institucional.

Sabe aquele forte e poderoso que deveria proteger o fraco? Aquele que, em vez disso, abusa da própria força para oprimir seu semelhante, viola a lei de Deus. São os que se arrogam donos da verdade – indignos, juízes e carrascos –, ceifadores de vidas inocentes.

Pois é… Não se assuste com a sombra. Como Narciso, é sobre nós que falamos aqui. Políticos, religiosos, juízes, generais… Todos, sem exceção, serão nivelados pelo mesmo silêncio.

A morte

A morte… Não precisa de tribunal. Não pede permissão. E, ao contrário da justiça dos homens, não se deixa corromper – nem se ilude com a vida. 

Portanto, nada de novo no “front” [4]. Afinal, como ensinam os Espíritos, “a morte é a libertação do espírito da escravidão do corpo; é o regresso à pátria verdadeira dos que vivem com esperança” [5].

E é justamente essa essência que a morte revela – despindo títulos, desmascarando vaidades, nivelando todos diante da verdade que não se compra

Referências

[1] Sêneca. (2006). “Cartas a Lucílio”. Trad. José Eduardo S. Lohner. São Paulo: Martin Claret. (Carta 93).

[2] Sêneca. (2020). “Cartas de um estoico”. V. I. Trad. Rodrigo G. da Silva. São Paulo: Edipro. (Carta 24 – Sobre o desprezo pela morte).

[3] Kardec, A. (2009). “O livro dos Espíritos”. Trad. José Herculano Pires. 86. ed. São Paulo: Editora IDE. (Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita, Item VI – Resumo da Doutrina dos Espíritos).

[4] Remarque, E. M. (2018). “Nada de novo no front”. Trad. Helen Rumjanek. Porto Alegre: L&PM.

[5] Kardec, A. (2009). “O Livro dos Espíritos”. 86. ed. São Paulo: Editora IDE. (Questão 934, comentário de Kardec).

 

Notas do Autor:

[A] Desinteligência: mais do que simples falta de entendimento, aqui o termo é usado para expressar a ruptura do diálogo racional, a escolha consciente pela ignorância ou pela distorção dos fatos em nome de interesses pessoais, ideológicos ou emocionais.

[B] Paradogma: neologismo criado a partir da fusão entre “paradoxo” e “dogma”, sugerindo uma crença ou doutrina que, embora tida como absoluta, sustenta-se em contradições internas ou incoerências lógicas.

Imagem gerada por IA pelo autor

 


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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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