Hugo Lapa
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É essencial conhecer, na história da Humanidade, as origens do termo Espiritismo, inclusive para compreender o uso que Kardec deu à palavra.
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A maioria dos espíritas brasileiros acredita que foi Allan Kardec quem cunhou o termo “Espiritismo”. Na introdução de “O livro dos Espíritos”, obra publicado em abril de 1857, pode-se ler os seguintes comentários de Kardec a respeito [grifos do original] [1]:
“Para as coisas novas necessitamos de palavras novas, pois assim o exige a clareza de linguagem, para evitarmos a confusão inerente aos múltiplos sentidos dos próprios vocábulos. As palavras espiritual, espiritualista, espiritualismo têm uma significação bem definida; dar-lhes outra, para aplicá-las à Doutrina dos Espíritos, seria multiplicar as causas já tão numerosos anfibologia [duplo sentido]. Com efeito, o espiritualismo é o oposto do materialismo; quem quer que acredite haver em si mesmo alguma coisa além da matéria é espiritualista, mas não se segue daí que creia na existência dos Espíritos ou em suas comunicações com o mundo visível.
Em lugar das palavras espiritual e espiritualismo empregaremos, para designar esta última crença as palavras espírita e Espiritismo, nas quais a forma lembra a origem e o sentido radical e que, por isso mesmo, têm a vantagem de ser perfeitamente inteligíveis, deixando para espiritualismo a sua significação própria. Diremos, portanto, que a Doutrina Espírita ou o Espiritismo tem por princípio as relações do mundo material com os Espíritos ou seres do mundo invisível. Os adeptos do Espiritismo serão os espíritas ou, se o quiserem, os espiritistas.”
Essa é a parte inicial da codificação espírita, e supõe-se que seja neste parágrafo onde Kardec afirma que foi ele próprio o criador do termo “Espiritismo”. No entanto, se lermos essa passagem com mais calma e atenção, veremos que Kardec em nenhum momento afirma que foi ele quem cunhou este neologismo.
Na primeira parte Kardec fala em “palavras novas” para se referir aos termos “Espiritismo”, “espíritas” ou” espiritistas”. O fato de uma palavra ser “nova” não indica necessariamente que foi Kardec quem a criou, indica apenas que se trata de um termo recente, que há pouco tempo passou a existir.
Depois disso, Kardec começa a explicar o termo “Espiritualismo” e afirma que esse conceito já estava, à época, muito bem definido, e tinha um significado mais amplo e vasto, sendo considerado um espiritualista toda aquele que crê em algo além da matéria. Um termo com sentido maior para designar uma doutrina que estava nascendo não seria adequado para um conhecimento emergente, por isso Kardec resolveu aderir a um termo ainda pouco utilizado, porém já existente em algumas obras que precederam “O livro dos Espíritos”. Portanto, observamos claramente que Kardec não disse, em parte alguma, ser ele próprio o criador do termo “Espiritismo”, mas apenas veio a utilizar, e de certa forma se apropriar dessa palavra para definir uma nova doutrina que estava em processo de formação.
Até onde eu conheço da codificação espírita, não tenho informação de nenhuma outra parte de todo o material produzido por Kardec em que o codificador tenha atribuído a si mesmo a autoria do termo “Espiritismo”. Se nossos leitores souberem de outra parte do vasto escopo teórico produzido por Kardec que faça referência a origem destes termos, peço que me informem.
Mas onde encontramos referências da palavra “Espiritismo” sendo utilizada em obras anteriores a Kardec? Até onde sabemos, os pesquisadores encontraram três referências do uso da palavra “Espiritismo” antes de Allan Kardec:
A primeira obra se chama “The Sacred Circle, Volume 1” do autor de 1855, dois anos antes de Kardec publicar “O livro dos Espíritos”. Nesta obra, o termo “Spiritism” em inglês aparece três vezes [2].
A outra obra em que o termo “Spiritism” aparece se chama “The Apocatastasis, or, Progress Backwards: a new tract for the times” do autor Chauncey Goodrich Burlington, publicada em 1854, ou seja, três anos antes de “O livro dos Espíritos”. Neste livro, o termo “Spiritism” aparece 9 vezes [3].
A terceira obra que conhecemos, que também cita o termo “Spiritism” antes de Allan Kardec, é “The spirit-rapper: an autobiography”, escrito por Orestes Augustus Browson. Esse livro também é de 1854, portanto, três anos antes de Allan Kardec [4].
Tendo em vista que existem, pelo menos, três obras anteriores a Kardec que citam o termo “Spiritism” em inglês antes de Kardec, fica claro que não foi o codificador da Doutrina dos Espíritos quem criou o termo “Espiritismo”.
Em acréscimo a esses fatos, podemos citar também a origem do termo “Espírito” no francês, idioma em que Kardec escreveu toda a Doutrina Espírita. Observemos que, no francês, a palavra “Espírito” é “sprite”, e não “spirit” como no inglês. No caso de ter sido Allan Kardec o criador do termo “Espiritismo”, é natural que ele tivesse utilizado o radical de origem francesa “sprit” e não “spirit”. Neste contexto, é evidente que o Espiritismo não seria “Spiritisme” (como é escrito Espiritismo em francês), mas sim “Spritisme”, dado que o termo “Spiritisme” não derivaria de “spirit”, mas de “sprite” em francês.
Tendo em vista todas estas revelações, uma pergunta natural seria: Se não foi Kardec quem criou o termo “Espiritismo”, podem outras religiões, como a Umbanda, o candomblé, e outras correntes espiritualistas também se denominarem espíritas? A resposta a essa pergunta, não poderia ser outra, a não ser um convicto “sim”. Não sendo Kardec o autor que cunhou o termo, e este lhe sendo anterior, obviamente que ninguém pode deter a exclusividade sobre a palavra “Espiritismo” e a designação de “espírita”. Aos irmãos umbandistas lhes cabe a decisão de se considerarem ou não “espíritas”, já que o termo Espiritismo não surgiu em Kardec, mas se referia, inicialmente, a um conhecimento anterior de contato entre encarnados e desencarnados livre de qualquer escopo doutrinário com limites definidos.
Outra questão que surge é a seguinte: sabe-se agora que não foi Kardec quem criou o termo “Espiritismo”, estariam os umbandistas e outros segmentos espiritualistas mais corretos ao denominarem os espíritas de “Kardecistas” e o Espiritismo de “Kardecismo”? Essa seria uma questão a se pensar. Alguns espíritas argumentam que o termo “Kardecismo” não é próprio, posto que essa palavra dá a ideia de que foi Allan Kardec o criador do Espiritismo, quando na verdade quem respondeu às perguntas e quem criou todo o corpo teórico doutrinário foram os Espíritos Superiores.
Isso é verdade por um lado, mas por outro lado observamos que a codificação não foi, em sua totalidade, escrita pelos Espíritos, mas que Allan Kardec escreveu muito por si mesmo, complementou, acrescentou, e fez também suas próprias reflexões. Até mesmo a seleção das respostas dos Espíritos que deveriam ser aceitas ou rejeitadas foi feita por Kardec, de forma mais ou menos arbitrária. Por esse motivo, fica difícil admitir que toda a Doutrina Espírita seja independente de Kardec. Apesar de Kardec ter se embasado nas respostas dos Espíritos, foi ele mesmo quem selecionou as respostas que deveriam ser incluídas no conjunto doutrinário. Por isso, a palavra final foi sempre de Kardec. Por isso, será mesmo que é algo tão distante da realidade denominar-se o Espiritismo de Kardecismo?
Apesar destas considerações terem o seu valor, não consideramos tão importante as palavras e suas origens. A Doutrina dos Espíritos, cunhada por Allan Kardec, não perde a sua essência, obviamente, apenas pelo uso anterior do termo que a define. O autor deste artigo tem o Espiritismo na mais alta conta, e acredita nesta abençoada doutrina libertadora.
Fontes:
[1] Kardec, A. (2004). “O livro dos Espíritos”. Trad. J. Herculano Pires. 64. Ed. São Paulo: LAKE.
[2] A obra pode ser encontrada, no original, em: <http://archive.org/details/sacredcircle00conggoog>. Acesso em 15. Set. 2025.
[3] Para acessar esta obra, no original: <http://archive.org/details/apocatastasisor00marsgoog>. Acesso em 15. Set. 2025.
[4] A obra pode ser encontrada, no original, em: <http://archive.org/details/spiritrapperana02browgoog>. Acesso em 15. Set. 2025.