Marcelo Henrique
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O Evangelho é perfeitamente adequado para crianças, adolescentes e jovens, como o é para os adultos de qualquer faixa etária. Mas não um evangelho “rançoso” e preconceituoso. Deve ser um “Evangelho aberto”, que permita às pessoas serem elas mesmas, livres e totalmente à vontade para criarem, crescerem e serem felizes.
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Preliminares
Há alguns anos, por e-mail, um jovem nos direcionou um questionamento. Disse ele: “Gostaria de saber o que vocês acham d’O evangelho para a infância e a juventude”. Como a pergunta não estava associada a nenhum contexto específico, nem fornecia maiores detalhes, procuramos responder a mesma considerando a importância do mencionado livro (“O evangelho segundo o Espiritismo”, escrito por Allan Kardec, para o cotidiano de crianças e jovens e, também, para o contexto das atividades espíritas.
Dissemos, inicialmente, que a Educação Espírita merecia uma abordagem mais ampla em relação àquilo que o movimento espírita tem feito dela nos últimos quarenta/cinquenta anos. E a alusão temporal que fiz estaria associada à década de 70 e, principalmente, à deflagração da conhecida “campanha permanente de evangelização espírita infanto-juvenil” (1979), pela Federação Espírita Brasileira (FEB). A diretriz da área responsável pela orientação deste público, definido a partir da faixa etária que compreende crianças, adolescentes e jovens, não me parece ser muito diferente das demais, direcionadas aos adultos. Afinal, optou-se por privilegiar um determinado aspecto (caráter) do Espiritismo, notadamente o religioso, em detrimento dos demais (filosófico e científico). Mais especificamente, optou-se pela configuração de um movimento direcionado ao conteúdo religioso-moral, deixando em segundo plano os elementos associados à Filosofia e à Ciência.
Forçoso é, de início, lembrar a precisa definição do Espiritismo, segundo a configuração dada por Allan Kardec: doutrina espiritualista, com base científica e consequências morais: uma Ciência Filosófica.
Todavia, considerando a nossa posição de maior país espírita no planeta e a influência das diretrizes estabelecidas pela FEB em relação aos demais países onde há organizações similares – inclusive sob a orientação do Conselho Espírita Internacional (CEI), torna-se necessário rever/contextualizar/entender, no tempo, o percurso que desemboca nos dias atuais.
Evangelização OU Educação Espírita?
Curioso é que nas décadas de 50 e 60 e parte da de 70, tivemos muitos estudiosos da Educação Espírita (e não era “evangelização”). Podemos citar Anália Franco, Eurípedes Barsanulfo, Pedro de Camargo (Vinícius) e, é claro, José Herculano Pires. Este último, então, cunhou o termo “Pedagogia Espírita”, para sugerir aos espíritas que se estruturassem/qualificassem nas técnicas para o ensino-aprendizagem do Espiritismo. Todos esses autores, assim como outros, sempre exortaram a Educação Espírita, conceito pluriparticipativo e cúmplice, com a inclusão do educando em todo o processo. Distante, portanto, da cultura de evangelização, que foi, no passado, inclusive, objeto de conceituação como “catecismo espírita”, tendo alguns expoentes espíritas à frente, entre eles Rino Curti e Eliseu Rigonatti.
A Educação Espírita é, pois, inclusiva e cooperativa. Ela parte do próprio universo individual, do ser reencarnado, sua “bagagem” espiritual, considerando aspectos relativos à sua origem familiar, escolaridade, cultura, formação moral, entre outros. Em grupos voltados à atividade infanto-juvenil, o somatório das individualidades é importantíssimo para a definição da “plataforma” de trabalho, do currículo e da bibliografia, assim como para a programação das atividades que proporcionem aos educandos o maior proveito no processo ensino-aprendizagem, descortinando os elementos espirituais e espíritas relacionados à atual encarnação e, também, versando sobre a trajetória espiritual, nas vidas sucessivas e nas vivências como desencarnado.
A Evangelização, ao contrário, não tem este contorno, este colorido e esta proposta. Ela é reducionista. Considera a necessidade da padronização de conceitos e da “catequese espírita”, focada, quase sempre, em aspectos religiosos e estabelecendo conceitos “de fora pra dentro”, numa espécie de pasteurização ou padronização da busca por ser um “Espírito Superior”. E, nesse sentido, a busca se configura como algo artificial, calcado em uma moralidade imposta (ou sugerida), no mesmo padrão das liturgias ou recomendações de outras religiões. Neste “contexto” surgiu, no “Espiritismo à brasileira”, a recomendação (leia-se imposição) da “reforma íntima”, como uma “obrigação” dos espíritas.
Voltando à citada campanha permanente, devemos dizer que ela influenciou muitas gerações e a evangelização continua sendo a tônica do trabalho federativo de Norte a Sul do país. Com isto, perdemos todos! O modelo se distanciou da legítima proposta do PEDAGOGO Allan Kardec (que jamais objetivou instituir um modelo de instrução na forma de catequese ou evangelização a espíritas de qualquer faixa etária). A proposta kardeciana é da dialógica e da dialética, colocando os indivíduos (Espíritos) lado a lado ou frente a frente, horizontalmente, sem qualquer posição de hierarquia ou superioridade (espiritual). Na esteira dessa diretriz, outro PEDAGOGO, Herculano Pires, ao preconizar e estruturar a Educação (Pedagogia) Espírita, procurou ampliar o espectro da formação e da vivência espiritistas, buscando privilegiar o complexo pleno do Espiritismo como Filosofia, Ciência e Moral (Ética).
Mesmo que a tônica ou a ênfase do projeto federativo se apoiasse em Jesus, sua moral, seus ensinos, palavras e feitos, ainda que com alguma referência (expressa ou subliminar) aos princípios fundamentais da Doutrina dos Espíritos, não tem sido possível a visão sistêmica e ampla que a proposta espírita consagra. Lembremos a própria definição de Kardec: “a obra do Espiritismo é de Educação”. Não há educação parcial, que privilegie um só ponto ou visão, deixando os demais para “o futuro”. Em muitas situações, tendo em vista a ambiência das instituições espíritas, “um futuro que nunca chega”. Via de regra, por mais que as pessoas se esforcem, acabamos vendo, tão-somente as “aulinhas”, sob o formato de catecismo, a Evangelização, com poucas e boas exceções.
Ressalte-se que trabalhar as questões morais não é qualquer defeito ou impropriedade. Longe disso. Afinal, a base ético-moral do Espiritismo perpassa as parábolas e ensinos do homem Jesus de Nazaré. Mas a proposta e sua execução acabam sendo “defeituosas”, pela incompletude, pela parcialidade, pela imperfeição. Temos, como resultado disto, jovens “mancos” que não fizeram (e nem fazem) filosofia, nem, tampouco, ciência, com método e experimentação.
A evasão dos jovens
E o que acontece com tais adolescentes e jovens? A grande maioria deles se “desprende” das instituições com a maturidade (e independência, decorrente). Vão todos “cuidar da vida”, estudar (faculdade ou cursos técnicos), formam famílias e seguem a vida – longe dos centros espíritas.
É preciso investigar o porquê desse afastamento…
Afinal, o problema não está no Evangelho, em si. Vale consignar que ele, o Evangelho – espírita, isto é o conjunto dos atos e das palavras atribuídas ao Rabi, sob a interpretação dada pelo Espiritismo (mormente no próprio “O evangelho segundo o Espiritismo”, assim como nas demais obras de Kardec em que os atos, feitos e ditos de Jesus são mencionados – é importantíssimo, diria mais, essencial à compreensão da proposta espírita para o progresso individual e social. O compêndio destes ensinamentos é, portanto, efetivo e verdadeiro combustível para a construção seja do Homem de Bem seja da Sociedade melhorada (ou seja, regenerada, como está na Escala de Progressão dos Mundos Habitados, contida na teoria espírita).
Assim, com muito carinho e franqueza, eu disse àquele jovem (citado no início deste ensaio): – Fale, sim, do Evangelho, fale dos inúmeros fatos da vida de Jesus, aproxime-se do jovem Yeshua, entusiasme-se com a condição humana do Mestre, que sabia de todas as fraquezas humanas, que acreditava nas pessoas, que procurou construir um movimento de amor e transformação das pessoas e das coletividades. Mas não se esqueça, em termos da lógica kardeciana, dos elementos que formam o conteúdo do Espiritismo, isto é, a fundamentação teórica (filosofia) e o alcance prático, a prova (ciência), além do mero e conhecido viés moral (religioso). Isto, em verdade, é claro, irá requer “educadores” mais preparados do que os “voluntários” que vemos nas casas espíritas, quase sempre pessoas que (muitas vezes) mal sabem a teoria espírita, mas acabam tendo “muito boa-vontade e tempo livre”, o que acaba sendo, para muitos dirigentes, o bastante. Isto quando não se confunde o conteúdo espírita com obras espiritualistas, muitas delas mediúnicas, que são “reconhecidas” ou “validadas” como se fossem Espiritismo.
E prossegui: – Sabe o que acontece depois disso? A instituição espírita acaba “formando” um sem-número de pessoas sem base doutrinária, que mais não fazem senão repetir (decoreba) parábolas, trechos de livros ou respostas contidas nas obras fundamentais espíritas (como a sempre lembrada questão 625 de “O livro dos Espíritos (OLE)” – e, neste caso, interpretando-a equivocadamente, com base em uma tradução errada da resposta). Gente sem “lastro”, embora muito ativos e interessados. Companheiros que tomam os relatos dos romances mediúnicos como realidade para TODOS os Espíritos, deixando de entender que a descrição espiritual contida em tais obras é particular à condição evolutiva de cada ser desencarnado. Em “O céu e o inferno”, Kardec ilustrou alguns destes depoimentos, mas jamais os tomou como regra ou generalidade, aproveitando para discorrer sobre os fundamentos da teoria espírita, rechaçando as opiniões tidas pessoais e primando pelo caráter da universalidade dos ensinos dos espíritos.
Uma observação em relação ao dito acima, sobre a questão 625, de OLE: os espíritas em geral “acham” que Jesus é o Cristo – o mesmo da Cristandade, do Cristianismo, a figura da Santíssima Trindade da Igreja Católica, e não se apercebem disso. Para entender melhor isto, recomendamos outro artigo nosso (https://www.comkardec.net.br/separar-jesus-do-cristo-por-marcelo-henrique/).
Chegamos, assim, a uma época em que, em regra, não se têm argumentos para dialogar com as ciências, não se faz filosofia (que é a própria articulação lógico-racional das ideias) e não se consegue posicionar os postulados espíritas frente a pesquisas/descobertas/teses de diversas áreas. Salvo raríssimas e honrosas exceções. Pessoas que não sabem filosofar, porque não aprenderam a pensar por si próprios e só repetem, feito papagaios, ensinados, alguns chavões ou os próprios princípios básicos da Doutrina. Temos, na generalidade, uma “nova seita cristã”, bem diferente do “Projeto Espírita” (de Kardec), apenas congregando profitentes/adeptos/simpatizantes, a partir do proselitismo dito espírita, que prega, incorretamente, a necessidade de um intervenção da “Espiritualidade Superior” para que o planeta progrida e cultua a predestinação do nosso país, o Brasil, como o “centro do mundo” espírita (um invencionismo totalmente transverso e descabido contido em uma obra mediúnica brasileira, do final da década de 1930).
Finalizei a minha conversação com o jovem, naqueles dias, afirmando: o Evangelho é perfeitamente adequado para crianças, adolescentes e jovens, como o é para os adultos de qualquer faixa etária. Mas não um evangelho “rançoso” e preconceituoso. Deve ser um “Evangelho aberto”, sem dogmas, sem “pseudo-humildade”, sem cobrança de “reforma íntima”, a jato e a qualquer preço. Do contrário, um Evangelho que permita às pessoas serem elas mesmas, livres e totalmente à vontade para criarem, crescerem e serem felizes.
Seria, isso, muito? Continuo entendendo que não!
O tempo passou…
Mais de cinco anos após a minha conversa com aquele jovem, o teor da prosa permanece atual e contemporâneo. Ela “serve” para o momento atual e, mais precisamente, diante do (crescente e assustador) esvaziamento das juventudes e mocidades espíritas, Brasil afora.
E isto me fez escrever este artigo para que ele possa NOS incentivar às (imprescindíveis) mudanças no trato das questões de comunicação social, pedagogia, organização de instituições e atividades espíritas. Tanto em relação a crianças, adolescentes e jovens, como em face dos adultos em geral.
Permaneço acreditando num “movimento espírita diferente”. Que se pudesse (re)começar, começar de novo. Voltar ao começo (Kardec). E, entendamos: Começar pelo começo, não é ler de qualquer jeito ou decorar as obras básicas. É “pensar espiriticamente”. E, neste processo, permitir às pessoas que pensem e, como o próprio Professor francês sempre destacou, não serem “compelidas”, “forçadas”, “obrigadas” a entender postulados, conceitos ou princípios espíritas. Do contrário, deixar que a própria maturidade do ser, ao se perceber, observar o outro e acompanhar o que acontece no mundo, tirasse suas próprias conclusões – estas, é claro, respaldadas no Espiritismo. Pela observação, naturalmente, e pela inteligência aplicada em relação a tudo o que vê.
Será possível?
Imagem de StockSnap por Pixabay

Setembro de 2025
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