Por Marcelo Henrique, Leopoldina Xavier, Henri Júnior, Antonio Carlos Amorim e Wilson Custódio
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Por isso, mais do que nunca, é preciso estudar, refletir e resgatar a essência doutrinária, para que não sejamos conduzidos por modismos, sincretismos ou ilusões travestidas de progresso.
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Assim como toda e qualquer inovação, a Inteligência Artificial (IA) vem provocando euforia, admiração, estupefação e receios. Principalmente diante do universo que é vislumbrado, em termos do uso da ferramenta e, também, em face de, por ser um “objeto”, permitir que o seu emprego possa ser construtivo ou destrutivo, positivo ou negativo, ou, em termos maniqueístas, para o “bem” ou para o “mal”.
Muitas pessoas, ultimamente, parecem estar com medo do futuro. Inclusive em face da polarização de ódio no cenário das redes sociais. E, nesta ambiência, quase sempre a “culpa” é dos algoritmos, que distribuem postagens e conteúdos a partir da interação de cada um com tais redes.
Algumas hipóteses estão sendo levantadas de como a IA irá interferir na história humana como um todo e na vida individual de cada um. E é preciso ponderar acerca dos impactos que a “novidade” pode provocar, inclusive considerando a própria trajetória humano-social.
O medo
Nossa espécie, em sua trajetória planetária, apresenta um elemento interessante de análise: o medo. Tradicionalmente correlacionado com o sobrenatural, no curso do tempo, tal condição fez com que as igrejas em geral usassem personagens (fictícios ou projeções do inconsciente). Um deles, satã, diabo ou demônio foi escolhido para manipular os outros. Essa dominação era puramente humana. E, então, a religião oferecia “proteção” ou “segurança” para os fiéis, diante da influência do tal personagem.
Evidentemente, para que a ascendência da religião sobre o ser fosse mais relevante e provocasse os desejados efeitos – no sentido da fidelidade à crença, à subserviência a autoridades humanas e, em muitos casos, a contribuição financeira para o credo – o imaginário teve que ser “encarnado” em situações da vida e em pessoas do derredor: um inimigo declarado, um patrão, um empregado, um colega de serviço, um parente ou um político (para lembrar as conjunturas mais recentes).
Assim, a fé (cega) fazia com que os indivíduos recorressem às igrejas e seus representantes para não serem alcançados pelos atos demoníacos.
E a inteligência?
O cerne desta questão – fé, crença e entendimento acerca de situações ou coisas – está na definição de inteligência. O que é, então, a inteligência? Na definição espírita, o principal atributo do Espírito, que o difere dos outros seres da criação, especialmente os animais. A inteligência é resultado de um longo processo progressivo, derivando do instinto e, a partir das experiências (encarnatórias), a mesma se aperfeiçoa.
Muitos diferem a inteligência da consciência. Mas o que é consciência? Para os materialistas, não há distinção, pois ambas, consciência e inteligência são o efeito do cérebro humano (matéria). Então, será que apenas a matéria “causaria” a consciência e a inteligência de um indivíduo?
Na visão da Filosofia Espírita, encontramos no Capítulo III, item 9, de “A Gênese”, a diferença “técnica” (real) entre instinto e inteligência. E, a partir daí, podemos delimitar a distância que há entre inteligência e consciência. A segunda simboliza o uso da inteligência, sobretudo a partir da noção (mais ou menos exata conforme a marcha progressiva) da consciência sobre os próprios atos e as disposições das Leis Universais.
Portanto, um indivíduo inteligente pode não ser consciente, ou, ainda, pode ter uma consciência enviesada, justamente porque ou não conhece a dinâmica da vida (espiritualmente falando) ou a conhece mas não deseja seguir os normativos que não precisam estar escritos em nenhum código. Recordemos que, quando Kardec perguntou às Inteligências Invisíveis sobre onde estariam grafadas tais leis, eles responderam cabalmente: “Na Consciência” (item 621, de “O livro dos Espíritos”).
Isto faz bastante sentido, inclusive, em relação à interpretação e ao uso da IA.
A IA é inteligente?
A partir da disponibilização das ferramentas de IA, também os espíritas passaram a buscar utilizar a mesma para temas relativos ao Espiritismo. Assim, numa rápida “viagem” pela internet, já é possível encontrar alguns experimentos, prompts disponíveis e artigos ou relatórios sobre o uso da IA (em temáticas espíritas).
Isto nos leva a uma interessante encruzilhada: alguns grupos têm usando a IA para analisar textos e conceitos filosóficos espíritas ou, até, para “analisar” o próprio Espiritismo. Como, via de regra, tais ferramentas se valem do próprio conteúdo disseminado na internet, onde existe a liberdade de expressão e de interpretação de infinitos temas, não havendo qualquer filtro ou elemento de confirmação da veracidade e pertinência dos escritos, a geração de conteúdo por IA poderá – e isso se confirma, na prática – gerar conhecimentos equivocados e sem fundamento em princípios e conteúdos genuinamente espíritas.
E, como tal, estes novos textos/materiais acabam se posicionando como enormemente distantes do conhecimento derivado do ensino dos Espíritos Superiores, contidos nas obras de Kardec.
Mais especificamente, outros compêndios teóricos, erigidos paralelamente ao Espiritismo, como a teosofia, a ufologia, a física quântica, o reiki, as terapias alternativas, bem como o roustanguismo, o ubaldismo, o emanuelismo, o andreluisismo, entre outros. Deste modo, a ambiência espírita acaba sendo um cenário de amplo (e infinito) sincretismo filosófico-religioso.
Vale dizer que não se está condenando nenhuma outra teoria. Muito pelo contrário. As pessoas são livres para acatar e seguir aquilo que lhes seja útil. O que se alerta é a “mistura” que se faz entre teorias, filosofias ou entendimentos, inclusive com a pueril afirmação: “que mal tem?”.
A questão de fundo é a de absoluta incongruência entre o que determinadas teorias apresentam em relação ao conteúdo verdadeiramente espírita. E isto não significa que estamos defendendo a cristalização e a “parada no tempo” do Espiritismo, ficando restrito ao conteúdo produzido entre 1857 e 1869, com as obras assinadas e publicadas, em vida, pelo Professor francês. Não, muito pelo contrário. O Espiritismo é progressivo e progressista e se aplica às questões da vida atual, devendo os espíritas entenderem as novas contingências planetárias e aplicarem a sua inteligência para a interpretação de fatos e situações do presente. Mas isso não significa substituir os princípios espíritas por afirmações – as mais das vezes vazias e sem lastro lógico-racional, decorrentes, apenas, da crendice e de visões pessoais, particulares.
O cenário atual e o uso das potências do Espírito
Sabemos, inclusive pelas pesquisas científicas da atualidade que a inteligência envolve muitos elementos, entre eles a memória e a criatividade. No aspecto relativo à memória, devemos entender que as ferramentas cibernéticas ampliam enormemente a capacidade humana (ao menos em nossa condição atual). Quanto à criatividade, devemos ponderar acerca das ideias intuitivas (lembranças de nossa vida espiritual pregressa – encarnações anteriores) e, também, as inspirações (contribuições dos Espíritos que nos acompanham) e, neste caso, sem as mesmas serem exteriorizadas, tal conteúdo é inacessível aos computadores.
Porque as máquinas não têm consciência (são equipamentos cada vez mais rápidos, mas não são autônomos, apenas obedecem uma programação, embora cada vez mais sofisticada). Então, via de regra, o ato de entregar decisões às próprias máquinas resulta, ao final, na repetição do que já existe ou do que já foi feito, posto que encontrado nas memórias dos bancos de dados de inteligência artificial não pode ser utilizado sem reflexão e consciência, sob pena de representar, como disse o neurocientista Miguel Nicolelis, a burrice natural. O resultado, portanto, dessa dependência em relação aos computadores (e ao conteúdo produzido por IA) seria, realmente, limitante, para dizer o mínimo, porque representaria a utilização sem aplicação do raciocínio inteligente, para distinguir, a partir da lógica e de pesquisas mais aprofundadas, o “joio” do “trigo”.
Outros riscos
Como afirmamos, a inteligência artificial, como qualquer ferramenta, pode ser útil para os espíritas – mas só será realmente segura se utilizada com discernimento e alicerçada em uma base sólida. E essa base, para o espírita consciente, está na obra de Kardec.
O alerta, então, está dado: sem estudo, sem crítica e sem fidelidade ao legado dos Espíritos Superiores, seremos presas fáceis de pseudossábios — encarnados ou desencarnados — que promovem o personalismo e o culto ao ego, assim como a disseminação de conceitos personalíssimos, derivados de teorias pessoais que não possuem verossimilhança.
A história se repete, e seus ciclos estão registrados na cronologia dos tempos. Basta olhar para trás e veremos que, sempre que o conhecimento se afastou da verdade, o resultado foi confusão, dominação e perda de discernimento.
Por isso, mais do que nunca, é preciso estudar, refletir e resgatar a essência doutrinária, para que não sejamos conduzidos por modismos, sincretismos ou ilusões travestidas de progresso.
E talvez, não tardará o dia em que surgirão adoradores de “deuses digitais”, “anjos algorítmicos” e “demônios virtuais” — reflexos modernos das antigas idolatrias, agora alimentadas pela ignorância tecnológica e pela ausência de discernimento espiritual.
Porém, é o Espírito que estará atuando sobre a matéria — e é nele que reside a verdadeira inteligência, a consciência e o propósito.
O ECK e a IA
O ECK vem, já há bastante tempo, em nosso Portal, numa seção própria (link) abordando o uso consciente da IA, principalmente no Espiritismo, sem descartar o avanço em várias áreas. Temos, assim, publicado textos profundos e essenciais, tanto para orientar a pesquisa quanto para exemplificar o bom uso da IA.
Para o ECK, duas questões devem ser pontuadas na IA, a maturidade e a responsabilidade. Em termos, o pensar é próprio do homem e depende do meio, da evolução moral e intelectual, e também das emoções, condições que a IA não consegue alcançar. Cabe a nós, espíritas conscientes, cônscios destes elementos, utilizarmos com efetividade e com propósitos elevados a IA, ampliando as perspectivas de disseminação do (correto e adequado) conhecimento espiritual-espírita ao maior número possível de pessoas interessadas.
Mãos à obra, então!
Imagem de Gerd Altmann por Pixabay