Alguns pontos questionáveis de “O livro dos Espíritos” (Parte 2), por Sidnei Batista

Tempo de leitura: 12 minutos

Sidnei Batista

NOTA INTRODUTÓRIA DO ECK

Concebido em três partes, este estudo visa levantar questões acerca de pontos considerados questionáveis pelo autor, em relação à primeira obra de Kardec, “O livro dos Espíritos”. A intenção é apresentar refutações de cunho doutrinário direcionados a Espíritos fortes, livres-pensadores, emancipados de preconceitos, cuja morada intelectual é construída na rocha firme da razão científica.

Acompanhe, uma a uma, as partes. Reflita sobre os apontamentos nelas contidos. Sugerimos discuta os mesmos em seu grupo de estudos espíritas, permitindo o arejamento que só o contraditório propicia.

Espiritismo COM Kardec

SEGUNDA PARTE

Liberdade e Não-Liberdade

No item “122”, há a seguinte afirmação: “O livre-arbítrio se desenvolve à medida que o Espírito adquire consciência de si mesmo. Não haveria liberdade, se a escolha fosse provocada por uma causa estranha à vontade do Espírito. A causa não está nele, mas no exterior, nas influências a que ele cede em virtude de sua espontânea vontade. Esta é a grande figura da queda do homem e do pecado original; uns cederam à tentação e outros a resistiram”. 

O Espírito, sabe-se pela teoria espírita, quando recém-saído da fase animal, independentemente de estar encarnado ou desencarnado, ao iniciar os primeiros passos na fase humana é incapaz de distinguir o que é Bem e o que é Mal. Ele, trazendo no psiquismo toda uma carga de instintos – com os quais irá desenvolver o pensamento e a razão – a partir desse início, se lhe manifestam os germes do livre-arbítrio que ele vai desenvolver natural e espontaneamente à medida que gradativamente se torna consciente de ser existencial. 

Contudo, pelo teor da resposta do Espírito, o Princípio Inteligente mal tendo iniciado a condição de Espírito, já se torna passivo, joguete e submisso a coações e influências de outros Espíritos imperfeitos, preexistentes a ele, e que o impelem e o estimulam para o mal. De acordo com a resposta, os maus exercem sobre ele um domínio irresistível, seduzem-no com promessas de valores materiais, estimulam-lhe a buscar satisfações e prazeres danosos a todo custo. Fascinam-no com o poder sobre tudo e todos, inoculam nele a vaidade, o egoísmo e o orgulho, confirmando a tese “rousseauniana” de que o homem nasce puro, porém, a sociedade o contamina, inoculando-lhe seus vícios e defeitos. Seriam, pois, métodos idênticos aos dos criminosos agenciadores para atrair crianças ingênuas com o fito de explorá-las na atividade criminosa, oferecendo-lhes coisas atraentes como dinheiro, presentes e guloseimas.

A meu ver, a resposta soa estranha quando afirma não haver liberdade se a escolha fosse provocada por uma causa alheia à vontade do Espírito, e que a causa “não está nele”, mas no exterior (forças externas), “nas influências a que ele cede em virtude de sua espontânea vontade”. Ora, se, de um lado, se diz que ele se submete à vontade alheia por não ter vontade própria, e do outro lado diz que ele cede em virtude de sua espontânea vontade, há aí uma contradição. De duas uma: ou ele tem ou não tem vontade. Se a tem não é por culpa de terceiros, a causa está nele uma vez que seus objetos de atenção fazem parte de sua escala de valores relativa a seu mundo de vivência; se não tem vontade, então a culpa não pode ser dele, esta deve antes ser imputada a terceiros, malfazejos que o pressionam e o incitam ao mal.

Aí eu pergunto: os mesmos Espíritos que assediaram outros “ao nascerem”, não teriam sido também assediados pelos mais velhos que eles? E, num encadeamento infindável, da mesma forma, estes, por sua vez, também quando nasceram não teriam sido igualmente fascinados por outros que nasceram antes deles? Pela lógica, essa retrocessão em cascata não nos força concluir que quanto mais “antigos” forem os Espíritos, estes deverão ser mais inteligentes, mais poderosos e mais maldosos, manobrando os mais jovens? Ora, a julgar pela resposta, quanto mais recuarmos para o princípio de cada criação, deve haver uma sucessão interminável de seres perversos, formando simetricamente ordens e classes mais poderosas, em quantidades infinitamente numerosas, votados eternamente ao Mal. 

É evidente que o Espírito que respondeu dessa forma trazia, ainda forte no subconsciente, a doutrina teológica da queda dos anjos, culminando com a figura de Satanás remontada ao começo dos Tempos. Se aprovássemos a resposta ao pé da letra, ver-nos-íamos compelidos a admitir que os gênios maléficos – desde o princípio inclinados ao Mal absoluto – são extremamente inteligentes e racionais, no grau absoluto. Seu chefe supremo, Satanás, então, igualar-se-ia a Deus em inteligência e atributos. Ora, dando aval a tal resposta, somos levados a admitir que, desde os confins da eternidade, Deus sendo a perfeição suprema do Bem, tem por contraponto Satanás como a “imperfeição suprema” do Mal.

Essa doutrina da queda faz cair por terra o princípio de isonomia, propugnado pela Lei Divina. O princípio de isonomia prega a igualdade absoluta de todos os seres, assegurada como princípio constitucional da Lei Natural eterna e imutável. Tal princípio está patente na questão “803”, mas é na questão “92” que ela se patenteia verossímil. Questão completa e totalmente estruturada nas Leis da Física, que rege os nossos processos de desenvolvimento desde o “átomo” ao “arcanjo”. A potencialidade, o poder de irradiação da Alma é concomitante ao seu estado de pureza, definindo-lhe, portanto, seu grau de desenvolvimento.      

O “arcanjo” começou como átomo individualizado. Porém, antes dele, precedendo-o na escala existencial, já existiam em graus inumeráveis, outros arcanjos de magnitudes colossais de saberes e conhecimentos intelectuais e de valores morais. Estes, por sua vez, no seu instante primeiro de vida, encontraram uma infinidade de Inteligências de todos os graus e todas as ordens e hierarquias, e assim, retroativamente eterna. Dessa forma, guardadas as devidas proporções referentes ao tempo em que cada um fora criado, superioridade ou inferioridade entre arcanjos e átomos são meras conceituações relativas, uma vez que ambos detêm idênticos atributos, idênticas potencialidades e capacidades energéticas vibratórias absolutamente iguais. O conceito de superioridade somente é valido existe para quem está acima de alguém, tanto quanto a inferioridade somente é válida para quem está abaixo desse alguém.

Posto que o Homem seja um Espírito igual aos que lhe assediam, logo ele é causa e efeito de si mesmo, é ao mesmo tempo agente e paciente nas relações com seus semelhantes encarnados ou desencarnados, sobre os quais ele exerce, ou sofre, influências de acordo com a escala de valores intelectuais e morais que os ligam, no campo das afinidades. Consoante à cadeia evolutiva, numa interminável sucessão de elos, as graduações psíquicas deles são próximas, para cima ou para baixo. Na escala universal, todos os Espíritos são, ao mesmo tempo, inter-passivos e interativos uns em relação aos outros, interligados simétrica e sinergeticamente, formando uma infindável rede de conexões mútuas de influências (item “459”).

Seguindo, temos os itens “122a” e “122b”, em que se extrai: “Dos Espíritos imperfeitos que procuram envolvê-lo e dominá-lo… Foi o que se quis representar na figura de Satanás”. “Segue-o na vida de Espírito até que ele tenha de tal maneira adquirido o domínio de si mesmo que os maus desistam de obsediá-lo”.

Devemos partir do mesmo raciocínio apresentado em relação ao item “122”. As palavras do(s) Espírito(s) predispõem, então, ao maniqueísmo eterno entre o Bem e o Mal. Supondo que um homem que sofra o assédio venha a se libertar da ação maléfica dos maus, estes, ao se convencerem de não mais terem influências sobre aquele homem, desistirão dele e buscarão novas vítimas para dominarem. Mas, um dia, as novas vítimas também deverão se libertar de seus assédios. Então, aqueles maus Espíritos de antanho partem à procura de outras vítimas, depois outras e outras e outras, numa insaciável sede de dominação sem parar. Ora, nesse caso, na busca insaciável de novas vítimas os Espíritos perversos estarão perpetuamente fadados ao Mal e, assim, jamais progrediriam. 

A Conclusão, então, é patente: tal doutrina é injusta, cabível mais ao Cristianismo e às suas religiões vertentes, mas nada tem a ver com o Espiritismo.

O Bem e o Mal, absolutos

No item “124”, Kardec pergunta: “Havendo Espíritos que, desde o princípio seguem o caminho do bem absoluto, e outros o do mal absoluto, haverá gradações, sem dúvida entre esses dois extremos? E, como resposta, foi consignado: “Sim, por certo, e constituem a grande maioria”.

Kardec, em realidade, ao perguntar, faz uma afirmação que equivaleria a uma reposta conclusiva. Declara, ele, haver seres privilegiados que logo no instante em que são criados, seguem o caminho do bem “absoluto”, ao passo que outros seguem o caminho do mal “absoluto”. Neste contexto, fica visível a doutrina da graça e da predestinação ditada pela liturgia cristã. Deus, por ela, faz distinções a alguns favoritos, oferece-lhes regalias imprimindo na sua fronte o sinal de filhos diletos enquanto “se mostra insensível” aos deserdados de sua atenção, os desfavorecidos, que deverão despencar-se nos despenhadeiros dos erros e dos sofrimentos, ralarem-se nas provas para chegarem ao Céu. Sim, Ele próprio derroga Suas leis de justiça absoluta de igualdade de condições para todos os seres. Manifesta idealização do Deus antropomórfico e antropopático (portador de sentimentos, atitudes e personalidade humanos), que nós, humanos, trazemos enraizados no inconsciente. E que, até os próprios “Espíritos Codificadores” ainda conservam. 

Não obstante ser um Espírito de relativa elevação, Kardec ainda é humano. Ele pode perfeitamente ter feito esse tipo de pergunta. Porém, entendemos que o Espírito Verdade, que lhe é superior, deveria responder que não haveria Espíritos seguidores do bem “absoluto” nem, tampouco, Espíritos seguidores do “mal absoluto desde o princípio. Confirma-se, assim, que caso tenha sido o Espírito Verdade o respondente, ele seria bastante limitado em conhecimentos. Ou, então, o Espírito Verdade, neste contexto, se calou, consentindo à conclusão de Kardec.

Adiante, na questão “125”, Kardec insiste: “Os Espíritos que seguiram o caminho do mal poderão chegar ao mesmo grau de superioridade que os outros?”. E a resposta: “Sim, mas as eternidades serão mais longas para eles”.

Para debatermos as duas questões, juntas, vejamos antes a definição dos vocábulos “princípio” e “absoluto”:

Princípio: Etimologicamente, princípio significa o instante em que alguma coisa, alguém, ou fato, começa a existir ou acontecer. Antes desse instante essa coisa, esse alguém não existia, nem tampouco esse fato teria acontecido. 

Absoluto: significa pleno, completo, totalmente acabado. Na acepção que ora lhe está se dando, no absoluto não há espaço para o relativo. No caso presente, o conceito de absoluto é o de perfeição suprema, final, de extremos em termos de tempo, espaço e de condição. Porém, os atributos de perfeição e inteligência supremas e ilimitadas são exclusivos de Deus. Mas, em contraponto, estamos nos referindo a Espíritos, que são criações de Deus. Por mais longínquo que recuemos no “pretérito” da Eternidade, jamais chegaremos a um momento que poderia ser o ponto inicial da Criação, e que, antes dela, nada existia. Por outro lado, por mais distante que avancemos no futuro, Deus jamais cessará de criar. Como num jorro a todo instante, quantidades incalculáveis de Princípios Inteligentes são simultaneamente criados. Homogênea e simulcadenciada, de cada “jorro” surge uma nova geração, e cada qual vai sucedendo a outra, incessantemente. A divina criação lança à vida, então, gerações e gerações de princípios inteligentes, ou princípios espirituais, sendo que cada geração de “evolução homogênea”, forma na cadeia evolutiva linhas progressivas, encadeadas e superpostas a outras linhas de distintas gerações, as anteriores e as posteriores. 

A frase “as eternidades são mais longas para eles” não tem, pois, cabimento no Espiritismo. Eternidade não tem começo, não tem meio e não tem fim. Não é mensurável em tempo (passado, presente e futuro). Ora, se eternidade define algo que não tem começo nem fim, onde então fixar nela um ponto qualquer onde se poderia dizer: aqui é a metade entre o que ficou para trás no passado e o que virá pela frente no futuro.    

A Evolução Infinita

A pergunta “888a” destaca com clareza o encadeamento da evolução infinita: “… Não olvideis jamais que o Espírito, qualquer que seja o seu grau de adiantamento, sua situação como reencarnado ou na erraticidade, está sempre colocado entre um superior que o guia e aperfeiçoa e um inferior perante o qual tem deveres iguais a cumprir”

Léon Denis, por sua vez, captou e compreendeu muito bem o significado racional desta frase: “A escala ascensional comporta planos sucessivos e superpostos; em cada um deles os seres são dotados do mesmo estado vibratório, de meios análogos de percepção que lhes permitem reconhecer-se mutuamente, ao passo que se lhes conservam invisíveis e muitas vezes mesmo incognoscíveis os seres dos planos superiores, em consequência de seu estado vibratório mais acelerado e de suas condições de vida mais sutis e mais perfeitas (“No Invisível”, Capítulo VIII – As leis da comunicação espírita).  

Não é lógico, então, admitir que alguns Espíritos se façam retardatários e experimentem dificuldades extremas para avançarem. Por conseguinte, por tal teoria, eles custariam a chegar ao ponto supremo, enquanto outros Espíritos prosseguiriam sem maiores obstáculos e chegariam mais rapidamente ao “topo”. Reiteramos que, na progressiva cadeia evolutiva, as gerações, cada qual com sua “idade” homogênea, uma sucedendo à anterior, formam elos graduais. Todos progridem igualmente em movimentos simulcadenciados, equiproporcionalmente homocinéticos. Se admitirmos que haja Espíritos retardatários, temos de admitir que alguns tropeçam no meio do caminho e caem; ao caírem, encontram obstáculos difíceis de transpor, desanimam e desistem da marcha, perdendo tempo, e estacionando seu progresso. Enquanto isso, seguindo essa linha de raciocínio, outros avançam sem dificuldades. À retaguarda, seguindo o caminho do bem, Espíritos mais jovens têm, então, o terreno livre de percalços, e ultrapassariam os “mais velhos” caídos na estrada, deles se distanciando, fazendo-os “comer poeira”, acessando os graus superiores com maior rapidez. Assim, tais estariam “liberados” de provas e expiações e reencarnariam apenas para cumprir os desígnios da evolução natural.  Desde que não cometam mal algum não há razões para lhes imputarem a sanção das leis de causas e efeitos. A complacência de Deus, por isso, não contemplaria os Espíritos que nasceram com desvios de conduta desde o princípio, condenados à tormenta de ásperas provas e expiações e destinados a passarem por difíceis e dolorosas reencarnações.

Acreditar, portanto, que haja Espíritos seguidores do mal absoluto desde que foram criados, é flagrante violação da Justiça Divina. Constatamos notável ambiguidade entre o conteúdo das questões “122” a “125” com a de número “171”, sobretudo na nota explicativa de Kardec acerca do dogma da reencarnação: “não estaria de acordo com a equidade, nem segundo a bondade de Deus castigar para sempre aqueles que encontraram obstáculos ao seu melhoramento, independentemente de sua vontade, no próprio meio em que foram colocados” (vide a análise em relação ao item “122”, antes apresentada).

Os Espíritos desde o princípio

No item “127”, Kardec comenta, após a resposta das Inteligências Invisíveis: “(…) Assim como temos homens que são bons e outros que são maus desde a infância, há Espíritos que são bons ou maus desde o princípio, com a diferença capital de que a criança traz os seus instintos formados, enquanto o Espírito, na sua formação, não possui mais maldade que bondade. Ele tem todas as tendências, e toma uma direção ou outra em virtude do seu livre-arbítrio”.

Tem lógica esta afirmação “Há espíritos que são bons ou maus desde o princípio”? Não tem. Desde que etimologicamente explicado, entendemos “o princípio” sendo o começo, o início, a origem a partir de um ponto zero. Tal como fizéramos na questão “124”, somos compelidos a indagar: a qual princípio Kardec se refere?

Seria este princípio o instante preciso da criação de duas Almas, recém-individuadas do Elemento Inteligente Universal (questão “23”) conforme a comparação das duas crianças que acabam de sair do ventre materno? Ou seria o final do derradeiro estágio da fase animal, em que ambas lentamente vão penetrando na escala do reino hominal, quando o Princípio Inteligente inicia como Espírito? Para compreender esse problema é imprescindível saber que antes de acessar o segundo, terceiro, quarto grau e assim por diante, os Espíritos começam a percorrer as fases milimétricas do estágio inicial da escala humana. 

Ora, na atual fase planetária, a Terra não é o ponto de partida da evolução dos Espíritos, mas já o foi, quando de seu estado primitivo. Total e fortemente movidos pelos instintos animalizados, desenvolvidos nas experiências pregressas nos reinos inferiores, os seres reencarnam inumeráveis vezes na fase dos hominídeos, insipiente das coisas e do mundo. Na ascensão aos graus sucessivos de progresso, eles dão seus primeiros passos como humanoides. Percorrem, então, uma extensa faixa de graus numa série de existências que precedem o período que chamamos de Humanidade (“607”) e ensaiam para a Vida, passando para a fase dos australopitecos. 

Vem, depois disso, a fase do homo habilis, a seguir a do homo erectus e, desta, a do homo sapiens – período chamado de “homem das cavernas” – até finalmente iniciar a ordem do homo sapiens sapiens, a humanidade atual. Cada período se estende por eras e eras a se perderem no tempo, em mundos apropriados às suas necessidades, para assimilar os seus aprendizados por meio de experiências interativas com seus semelhantes cujos graus sejam mais ou menos equiparados. Assim como nas fases dos reinos vegetal e animal, o então Princípio Inteligente continua se auto elaborando na senda do progresso espiritual. 

Será crível afirmar que, impelidos unicamente pelos instintos primários, atravessando extensas faixas de desenvolvimento nessas fases, iniciando o lento despertar da razão para desenvolver sua inteligência e a noção do livre-arbítrio, haverá Espíritos na condição de simples e ignorantes, capazes de fazerem escolhas entre duas tendências opostas, pelo mais alto juízo de valores morais, jamais cometendo o mais insignificante ato de prejudicar a si e a seus semelhantes? 

Façamos aqui uma comparação: numa população observam-se pessoas que, se não são totalmente boas, também não são totalmente más. Porém, nessa mesma população, são encontrados indivíduos de má índole, perversos, cujo número é impossível estimar, enquanto no extremo oposto há a classe das pessoas reconhecidamente boas, porém em quantidade mínima. Podemos, então, admitir que, por essa classe boa não ter defeitos, seu padrão de qualidade seria um do tipo ISO 9000, ao passo que os maus saíram com defeito de fabricação? Segundo tal crença, os que seguiram o caminho do mal necessitam que Deus os submeta periodicamente a um recall, implicando na cultuada mentira da “reforma íntima”, entre os espíritas religiosos brasileiros.

Afirmar, então, haver Espíritos que, por milhares e milhares de reencarnações em diversos mundos, desde os estágios primitivos, atravessam ilesos essas múltiplas fases, sem cometerem o menor deslize, praticando sempre o bem absoluto, não é só absurdo como viola o princípio de isonomia da Lei Divina. Sem a isonomia, a lei de igualdade natural (“803”) perde o atributo de imutabilidade de justiça divina. Ora, estamos tratando de seres sensíveis, com sentimentos e amor-próprio. Pode, porventura, um bebê que acabou de nascer, possuir noção de livre-arbítrio que o faça escolher a maneira de ser e de agir em toda sua vida humana? Não pode! E é impossível, mesmo quando olhamos esse nascituro unicamente como alguém existente no intervalo entre o berço e o túmulo. Na dimensão da Epistemologia Espírita, sabemos que na aparência de um corpinho frágil o bebê é um Espírito preexistente, portador de faculdades, indicando ser ele uma inteligência já desenvolvida ao longo de um pretérito mais ou menos remoto.

É o mesmo caso do Princípio Inteligente que acabou de individualizar-se do Elemento Inteligente Universal. Se o Princípio Inteligente começou do ponto zero, como teria ele capacidade de exercer seu intelecto e moral para escolher a direção e o gênero de Vida, optando pelo Bem ou pelo Mal? Segundo a questão sugere, aquele que instintivamente opta pelo Bem absoluto de modo algum terá, ao nascer, o menor sentimento de ódio e ficará a salvo das paixões inferiores. Seus sentimentos, assim, seriam incondicionalmente puros, mesmo que ele viesse a ser prejudicado em suas aspirações pela sociedade espiritual da qual compartilha. Enquanto isso, o outro que seguisse instintivamente o caminho do Mal absoluto, revelaria uma natureza brutal, com suas tendências rasteiras o conduzindo para os vícios, sentimento de vingança e, enfim, em todas suas atitudes, elegendo o ressentimento e ódio como conselheiros.

Será crível concordar com isso? Ora, sentenciarão alguns, em virtude de seu livre-arbítrio, é que eles tomam a direção que melhor se lhes apeteça. Em contrapartida, nós retrucamos: como poderiam exercer o livre-arbítrio, se eles, por não conhecerem (ainda) o Bem nem o Mal, não teriam a mínima noção de escolher entre um e outro? Aí aqueles voltariam a argumentar: justamente por não terem noção alguma acerca do Bem nem do Mal, posto que acabados de nascer, alguns “instintivamente” tenderiam para o Mal ao passo que outros, também instintivamente, se inclinariam para o Bem.

Neste contexto, como que pego de surpresa, como se ignorasse a diferença nata de caráter de suas criaturas, como é que Deus ficaria? Esse “erro da criação”, não estando em lugar algum, a quem seria imputado em termos de responsabilidade, senão unicamente a esse Deus que, além de imprevidente, revelaria uma faceta sombria de injustiça e de crueldade, oculta debaixo dos propalados atributos de perfeição, inteligência, justiça, onisciência e sapiência supremas. Com esse enunciado absurdo, Deus, então, faz distinção entre seus filhos, mostrando-se discriminador e segregacionista. A uns ele dispensa regalias e privilégios, enquanto a outros prescreve repressões e os rigores da lei. Deus não passaria, assim, de um “deuzinho” insignificante, vulgar, parcial e injusto, além de hipócrita e sádico. Revela-se um Deus capadócio, por não prever que dois filhos seus, recém individualizados, por sua “natureza”, seriam, um angelicalmente bom, enquanto o outro, diabolicamente mau.

Imagem de wal_172619 por Pixabay

Partes publicadas:

Alguns pontos questionáveis de “O livro dos Espíritos” (Parte 1), por Sidnei Batista

Alguns pontos questionáveis de “O livro dos Espíritos” (Parte 2), por Sidnei Batista

Alguns pontos questionáveis de “O livro dos Espíritos” (Parte 3), por Sidnei Batista

 

 

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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