Mujica: ovelha negra, rosa e verde, por Marcelo Henrique

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Mujica: ovelha negra, rosa e verde

Marcelo Henrique

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“Os grandes homens não pertencem a partidos, são patrimônio nacional, são um capital do país”, Pepe Mujica.

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José Alberto “Pepe” Mujica Cordano (1935-2025) deixou o palco da vida física neste treze de maio. Deputado (1994-1998) e Senador (1999-2004), foi Ministro da Agricultura (2005-2008), Presidente da República Oriental do Uruguai (2010-2015) e Senador (2015-2018), foi membro do Movimento da Participação Popular e, mais tarde, do Partido Frente Ampla. Antes, integrou o Movimento de Libertação Nacional Tupamaros, grupo de guerrilha de extrema esquerda, com inspiração na Revolução Cubana. Sua atuação levou-o à prisão quatro vezes, passando quinze anos, ao todo, no cárcere, sendo o maior dos períodos, treze anos (1972-1985).

Autodenominado “ovelha negra”, por sua aguda militância política desde os 14 anos, na clandestinidade, pelos ideais libertários e de reformas sociais – sobretudo para os mais socialmente carentes – se constituiu, na prática, em um dos vanguardistas da “onda rosa” (ou pós-neoliberalismo), assim descrito o movimento de ascensão das esquerdas na América Latina, responsável, também, por colocar em pauta temas sociais considerados polêmicos, em oposição ao conservadorismo, bem como “linkado” com a pauta verde, crítica ao consumo desenfreado e ao desrespeito ao meio ambiente.

Declaradamente ateu, mas de inspiração e prática humanista, deixa-nos um legado de muitas reflexões e ações, sobretudo em relação a políticas sociais e ao combate das mazelas contemporâneas de todo o planeta. Suas prioridades na atuação política e como presidente eram: educação, segurança pública, meio ambiente e energia, erradicação da miséria e redução da pobreza.

Mujica na intimidade.

Ei-lo pensando sobre a vida e Deus:

“Deus não existe. Pessoalmente, penso que a vida é a aventura das moléculas e que este pedaço do planeta que estamos mordendo é o paraíso e o inferno, tudo junto”, filosofou. Em outra oportunidade, ampliou o conceito sobre crenças: “Não tenho religião, mas sou quase panteísta: admiro a natureza”.

Nesta intimidade é preciso, outrossim, falar dos animais. Da cadela Manuela, de três patas, sempre presente nas fotos, nos atos políticos que viveu até os (quase) vinte anos. Perdeu a pata na roda dentada do trator e por isso virou a rainha da casa, cercada de mimos. Mas havia outros cães, dez. E meia dúzia de gatos, assim como galinhas e galos. “Bichos são fundamentais. É preciso aprender a amá-los porque são companheiros de vida”.

Humilde, mesmo fazendo jus ao salário de presidente (12,5 mil dólares), doava 90% destes a programas sociais e assistenciais, ficando com apenas dez por cento (1,25 mil dólares). Frequentemente despachava no Palácio Presidencial com o “traje” usual: sandálias, uma calça velha e um casaco, jamais usando gravata, mesmo em atividades oficiais internacionais. E isto favorecia a empatia e a popularidade, pela reciprocidade com seus patrícios. Sobre isso, destacou o escritor e compatriota Eduardo Galeano: “é um homem simples. As pessoas se reconhecem nele, e é por isso que ele inspira tanto entusiasmo e esperança”.

Um homem simples, de hábitos simples, como revelaram sua casa e seu “coche”, um fusca azul, 1987, icônico. Sobre si, dizia: “Não sou pobre, sou austero. Porque tenho minha liberdade e quero ter tempo para desfrutá-la. Não gosto da pobreza, gosto da sobriedade e de andar sem muita bagagem”. A casa, uma chácara em Rincón Del Cerro, onde viveu desde que saiu da prisão, nos oitenta, com Lucía, sua esposa e companheira desde a guerrilha, tinha somente o necessário: quarto, cozinha, banheiro e uma sala de estar com aquecedora lenha e livros, muitos livros. Nesta sua simplicidade encerrava a sabedoria da trajetória e as convicções de uma alma idosa: “O humanismo mais profundo vem pelo caminho da ciência. Em última instância, a filosofia é irmã da matemática e sem filosofia e sem ciência não há humanidade”.

Um político atípico, portanto, com uma surreal modéstia. Sua vida e sua trajetória pública, portanto, espelham uma nova cultura política.

Anarquismo e socialismo na veia.

Pepe se autodefinia como um anarquista crônico. Tinha se convencido, ele, de que o comunismo era algo impossível para os padrões da materialidade humana, quando, em Moscou, sentiu, como disse “um pontapé no fígado”: o império prussiano, na capital russa, era pura ostentação, em candelabros de ouro, escadas de mármore, tapetes persas e os membros do “partidão” vivendo luxuosamente em contraste com a tristeza e a miséria dos operários, nas fábricas. Convenceu-se que, assim, isto só poderia fracassar. Como fracassou.

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“O homem é uma criatura que vive em certa contradição. A história o fez de uma maneira e seu presente é outro. É socialista por natureza e egoísta e ambicioso devido ao seu tempo. Essa é a angústia do homem moderno”.

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Então, confirmou que o socialismo não pode se opor, jamais, à liberdade. Sabia ele que o liberalismo (econômico) tinha subido um degrau na humanidade, justamente porque, filosoficamente, se baseava na liberdade. Ainda que os meios não fossem – e não são, ainda – os melhores. Para Mujica, tudo o que tende a melhorar o homem passa pela liberdade. O anarquismo respeita a liberdade, mas isto não significa afastar-se da responsabilidade (pelos atos e omissões) ou, tampouco, ausência de limites. Daí sua frase célebre: “é impossível igualar para baixo; isto é uma estupidez e é possível que seja a coisa mais injusta”. E falava, com propriedade, da Venezuela que ele conheceu, onde tirar as pessoas da pobreza não é dar-lhes dignidade; pelo contrário, é colocá-las como presas fáceis do capitalismo (selvagem), que escraviza e vicia.

O essencial tripé.

Mas sabia reconhecer os méritos dos capitalistas: eles “são a energia criadora do mundo […] que nos tirou da caverna e foi capaz de criar um mundo atual”. E que mundo, dizemos nós! E o mundo que vem, à frente, toma de assalto o vigente e atropela as convenções, as rotinas, as certezas, não é mesmo? Para Mujica, “A criação de uma sociedade nova não é coisa para estúpidos. É preciso ter muita rua, filosofia e a cabeça bem aberta”.

Eis, aí, os três ingredientes: a experiência das vivências, a teorização que vem dos livros mas que brota do raciocínio interpretativo de tudo e, por fim, e não menos importante, a disposição para o novo, o diferente, o impensado: em outras palavras, a constância de não ter receio de substituir o que até então se pensava por outra ideia melhor, aperfeiçoada, porque forjada nos efeitos daquilo que se viveu.

Admirava Marx – como eu – não em relação ao que dele fizeram, ou como interpretaram ou aplicaram seus escritos. Seria similar ao que, em sendo, nós, espíritas, vemos por toda a parte, alegando ser “de Kardec”. O Espiritismo que vemos, usualmente, nada guarda de relação e conformidade com a teoria e as práticas do Professor francês, porque são, quase sempre, arroubos interpretativos e tergiversações acerca de sua obra. Exatamente como Marx que, a partir de sua leitura histórico-social, única e não repetida, depois, para apontar os erros do capitalismo, buscando seu aperfeiçoamento. O filósofo alemão jamais imaginou que o que ele teorizou, a partir do empirismo vigente, seria utilizado como justificativa para quaisquer desmandos não-democráticos, da mesma forma como o filósofo francês não poderia imaginar que a teoria espírita pudesse validar qualquer expressão voltada à manutenção da dependência dos indivíduos a um sistema de culpa, temor e salvação, como derivação cristã.

Sem ódio e com silêncios: da música para a lida diária.

O ex-prisioneiro político chegou à Presidência em seu país, dissociado daquilo que, em termos de ideias e inspiração, tinha apreço: os socialistas do século XXI (encabeçados por Chávez) e os comunistas, do XX. Teve, então, que “desistir” da “velha namorada da adolescência”, rejuvenescer o discurso, a inspiração motivacional e as ações como estadista.

Aliás, sobre os militares que o prenderam, Pepe sempre afirmou que não havia motivo para qualquer ressentimento. Seus companheiros de partido e de lida não se conformavam com isso. “Não tenho ódio dos milicos […]. Se não fossem eles, seriam outros.”, disse. Olhar pra trás seria como lutar com os mortos: “Viver envenenado é viver para nada”, concluiu.

O valente uruguaio também falava sobre o silêncio. Dizia que este é conquistado, não sendo presenteado. Algo como o saber falar e o saber calar, porquanto se não se tratar das coisas com conteúdo, as pessoas não lhe darão atenção nem o entenderão. Quando se fala “só por falar”, dizia Mujica, as pessoas não te ouvem. Mas só podemos falar com propriedade sobre aquilo que vivemos. A sabedoria, assim, “é viver com toda vontade e dizer o que se pensa”.

Talvez conheça tanto do silêncio por ter sido professor de piano e de solfejo. Porque a música não se faz (somente) das notas, mas das pausas, que são os silêncios. Mas não tinha um piano em casa. Somente um bandoneón, presente de Cristina Kirchner. Um dia, se animou a experimentar o instrumento, e foi um fracasso! Inventado pelos alemães, dizia, “deve ter sido feito por um anarquista bêbado. Tem uma linguagem distinta em cada mão e outra quando você o fecha. Na parte de cima, as notas estão distribuídas de uma forma estranha e você não as vê. […] Para dominá-lo, você tem de dedicar a vida. É lindo, porque tem o som nostálgico do tango”.

Sobre o tango, também ele falava: “É uma coisa maravilhosa, oferece uma das melhores descrições sobre o que é um casal. Quando você vai chegando aos quarenta, vai virando tangueiro. E aí acorda. Desfruta a nostalgia. As recordações passam a lhe entreter”.

Ler e recordar é viver!

E é mágico ter boas recordações. Não se lembrar, apenas, do que lhe fez mal, das decepções, das angústias, dos fracassos, dos amores e amigos perdidos. Lembrar das pequenas conquistas, dos doces e fugidios sabores, mas que perduram, porque quando reexperimentados ou revividos, em outros tons, cores e momentos, nos remetem às “primeiras vezes”, ou as que lhe seguirem. Deve ser triste, mesmo, não ter boas memórias.

Mas, Mujica as têm. E de sobra!

Sempre esteve envolto nos livros, materializando que “o papel do conhecimento fornecido pela cultura é o de despertar para uma vida melhor”. E esse despertar, para o pensador sulista importa em conhecer e reconhecer as maravilhas que não enxergamos, estando nas rotinas do cotidiano, em que estamos encerrados no trabalho, excessivamente, e não conseguimos viver a vida em plenitude, porque, quase sempre, “o ser humano passa ao lado da beleza ou não a vê”.

O protagonismo social.

Foi por isso que o Uruguai, sob sua direção, foi guindado a um país protagonista no cenário internacional. Suas ideias – que não eram, apenas, suas, mas também ecoavam na bancada governista no parlamento – compunham uma agenda social, com leis sociais específicas, calcadas em “opiniões politicamente incorretas” sobre temáticas de interesse mundial: a descriminalização do aborto (2012), a habilitação do casamento homossexual – matrimônio igualitário – com a permissão de adoção de filhos a casais homossexuais (2013), e a regulamentação estatal do comércio e do consumo da maconha (2013). Nas três situações, pensava e dizia o presidente, é preciso se preocupar com os que estão “no fundo do tacho”: pobres, negros, mulheres. E isso fez, aliando liberalismo e anarquismo, do Uruguai um país de vanguarda!

Para tais avanços, a “fórmula” mujicana se baseou na negociação ‘com os fortes”, o diálogo permanente: “Não é pragmatismo, mas um caminho taticamente mais suave, para não se isolar e poder somar forças em relação ao estratégico”.

Por todo o seu mandato, reconhecidamente, temas como falta de planejamento, consumo excessivo e predatório, escassez de recursos naturais e os problemas sociais foram a tônica. Nos discursos, como nas ações possíveis para um pequeno país no ponto final das Américas, sempre a diretriz de que o mundo adotara um rumo equivocado, sem sequer dar-se conta disso. Um mundo que se destrói e multiplica o desnecessário enquanto despreza o essencial.

O réquiem.

Mujica se foi, então, neste 13 de maio. Sobre a saudade que fica, ilustrou Goes (2025):

“A morte de Mujica autoriza o choro dos que não rezam. Não por contradição, mas por coerência. A gente chora o que é grande. E ele foi. Com leveza, com doçura, com a grandeza de quem viveu como pensava, sem ostentação, sem espetáculo, sem idolatria. E até nisso deixou um ensinamento: há beleza na saída quando a vida foi inteira”.

Agora que, fisicamente, ele se foi, nos restam as lembranças e aquilo que ele disse ou sobre ele foi dito. O mito subsiste e pós-existe. Exatamente como ele falou da morte: “Ninguém gosta da morte, mas, a certa altura, você sabe que, um pouco antes, ou um pouco depois, ela vai chegar. E, por favor: não viva tremendo diante da morte. Aceite-a como os animais da montanha. […] ela está aí, é necessário conviver com ela”. Porque, neste sereno e lúdico convencimento, ele sabia que os anos bem-vividos seriam geradores da sabedoria do cansaço e de uma humildade estratégica: estado necessário para poder admitir a morte, sem estarem infelizes, porque amaram a vida que viveram.

Ele conscientemente sabia que sua última foto, pública, seria a do caixão. Por isso, repetia, ao ser perguntado sobre o que faria após deixar a vida política, ele respondia: “Vou a um enterro”. E diante da perplexidade dos que lhe ouviam, após alguns segundos, repetia: “Vou a um enterro: o meu!”.

Por fim, devemos nos recordar de Mujica, como um grande homem, que vai além do espectro político e político-institucional. Patrimônio nacional do Uruguai, do nosso “pampa” sul-americano e internacional, pelo legado que deixou, em termos de integração, empatia e acessibilidade. Inspiração marcante para nossas ideias, palavras e atos, em todos os quadrantes de nossa interrelação humana. Exatamente como um dos que, inspirado pelos pensadores gregos, assim considerava: somente homens livres pensam de modo independente, porque imaginam além dos pensamentos e constroem o futuro!

Fontes:

CNN. (2024) Reflexões de Mujica antes dos 90 anos: “Deus não existe, mas espero estar errado”. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/reflexoes-de-mujica-antes-dos-90-anos-deus-nao-existe-mas-espero-estar-errado/>. Acesso em 10. mar. 2025.

Cohen, P. (2024). Los indomables. Filme. Espanhol. Montevideo: Planeta.

Danza, A., & Tulbovitz, E. (2015). Uma ovelha negra no poder: confissões e intimidades de Pepe Mujica. 2. ed. Trad. Luís Carlos Cabral. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

Goes, S. Pepe Mujica e o direito ateu de chorar. Brasil 247. Disponível em: <https://www.brasil247.com/blog/pepe-mujica-e-o-direito-ateu-de-chorar>. Acesso em 13. mai. 2025.

Martin, N. Morre “Pepe” Mujica, o presidente mais humilde do mundo. DW. Política. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/morre-jos%C3%A9-pepe-mujica-o-chefe-de-estado-mais-humilde-do-mundo/a-69649065>. Acesso em 13. mai. 2025.

Redação G1. Aborto, maconha e casamento LGBT: como Mujica levou o Uruguai ao topo da agenda progressista na América Latina. G1. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/05/13/mujica-liderou-agenda-progressista-e-tornou-uruguai-pioneiro-na-legalizacao-da-maconha-aborto-e-casamento-lgbtqia-na-america-latina.ghtml>. Acesso em 13. mai. 2025.

Tupina, M. Relembre a trajetória pessoal e política de Pepe Mujica, morto aos 89 anos. Folha de S. Paulo. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2025/05/relembre-a-trajetoria-pessoal-e-politica-de-pepe-mujica-morto-aos-89-anos.shtml>. Acesso em 13. mai. 2025.

Foto: Ricardo Stuckert, Presidência da República do Brasil,  divulgação. 

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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