Tudo me é lícito, mas nem tudo me convém, por Adauto Santos

Tempo de leitura: 8 minutos

Adauto Santos

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A licitude humana é temporal, geograficamente limitada e muitas vezes contraditória; a licitude divina é eterna, universal e coerente.

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A mensagem do Apóstolo Paulo, “Tudo me é lícito, mas nem tudo me convém” (I Coríntios 6:12), ressoa através dos séculos, não como uma restrição punitiva, mas como um convite à maturidade espiritual. Ela estabelece um critério de discernimento que transcende à mera legalidade, pois adentra na ética e na responsabilidade individual perante as leis divinas. Sob a luz da Doutrina Espírita esta afirmação se transforma num guia prático para a evolução.

Uma reflexão sobre a distinção entre o que é lícito aos olhos dos homens e o que é lícito aos olhos de Deus, inclui a educação do pensamento, a disciplina dos hábitos e a segurança das metas, três pilares propostos por Joanna de Ângelis, no capítulo V, do Livro “Plenitude”. Essa reflexão é indispensável para alinhar nossa vida ao que verdadeiramente nos convém.

A licitude humana versus a licitude divina

O ponto de partida para compreendermos a profundidade da afirmação de Paulo é desvendar a natureza dual do conceito de “lícito”.

 No plano humano, a licitude é uma construção social, mutável e frequentemente relativa. O que é lícito aos olhos dos homens é aquilo que a legislação não proíbe, que os costumes e a cultura de um tempo e lugar específicos aceitam ou até mesmo incentivam. Neste reino, a vingança pode ser disfarçada de “justiça”. A acumulação de riquezas à custa do bem-estar alheio é celebrada como “esperteza” ou “sucesso”. E a indiferença para com o sofrimento do próximo é justificada pelo “cada um por si”. 

São ações que, embora possam violar princípios éticos universais, não são, necessariamente, ilegais perante os tribunais humanos.

Já o que é lícito aos olhos de Deus é de uma ordem completamente diversa. A Doutrina Espírita nos liberta da visão de um Deus antropomórfico e punitivo, apresentando-O como a Inteligência Suprema, Causa Primeira de todas as coisas, cuja vontade se expressa através de Leis Imutáveis e Perfeitas que regem o Universo. A licitude divina, portanto, não é um conjunto arbitrário de proibições, mas a própria harmonia com essas leis. Aos olhos de Deus, só é verdadeiramente lícito aquilo que está em conformidade com a Lei de Amor, Justiça e Caridade — e acrescento, de Progresso. 

Enquanto a licitude humana é temporal, geograficamente limitada e muitas vezes contraditória, a licitude divina é eterna, universal e coerente.

O grande equívoco da nossa jornada — e uma fonte primária de sofrimento — é confundir essas duas esferas. Agimos sob a justificativa de que “não estamos fazendo nada de errado” perante a sociedade, ignorando o clamor silencioso da nossa consciência. 

Joanna de Ângelis nos alerta, no livro “Plenitude”, que a cura real do sofrimento “somente se concretizará se a terapia extirpar-lhe as causas”. 

A causa fundamental de grande parte de nosso sofrimento é exatamente essa dissonância: viver de acordo com a licitude humana enquanto violamos a licitude divina. Precisamos compreender que a licitude social não é um salvo-conduto para a paz de Espírito. Podemos estar absolutamente dentro da lei dos homens, entretanto, completamente em desacordo com a Lei de Deus, o que nos levará a colher as consequências infalíveis dessa desarmonia.

É aqui que a segunda parte da frase de Paulo “mas nem tudo me convém” se torna o nosso critério interno de “salvação”. E, na visão espírita, essa “salvação” corresponde à libertação das nossas imperfeições morais, o que nos aproxima de Deus.

Já “convir” significa ser apropriado, benéfico, edificante para o Espírito eterno que somos. Algo pode ser socialmente lícito, mas não irá me convir se gerar conflito interior, se alimentar o orgulho e o egoísmo, se enfraquecer minha vontade ou se semear consequências dolorosas para o meu futuro espiritual. A escolha pelo que convém é, frequentemente, a escolha pela estrada da retidão de princípios, em contraposição ao atalho aparentemente acolhedor.

A consciência: o campo de batalha entre o lícito e o conveniente

Como, então, discernir na prática diária o que, sendo permitido pela sociedade, não nos convém enquanto Espíritos imortais? A resposta reside na consciência, que atua como a voz das Leis Divinas em nosso íntimo, o “Cristo interno” que nos guia. 

As batalhas com a própria consciência não são um mal, mas um sinal extremamente positivo de progresso. Essas batalhas indicam que já progredimos o suficiente para não mais agirmos de forma automática e instintiva e já podemos vivenciar um padrão superior de conduta. Estas batalhas manifestam-se de formas que ilustram perfeitamente o tensionamento entre o lícito humano e o lícito (ou conveniente) divino.

Muitas vezes queremos fazer algo (lícito humano), mas a consciência nos alerta que não devemos (inconveniente divino). O desejo de vingança é o exemplo clássico. Perante a lei dos homens, a retaliação pode, em alguns contextos, ser compreendida ou até mesmo incitada. E muitas vezes somos encorajados a defender a vingança, como nos filmes de Hollywood (Ex.  Rambo), onde somos induzidos a torcer pela vingança e acreditamos, erroneamente, que  estamos certos, como se a Lei de Talião, do olho por olho e dente por dente, estivesse em conformidade com a Lei de Amor ensinada por Jesus. No entanto, a consciência, ecoando a Lei de Amor, alerta-nos para o ciclo de ódio que se inicia, para o aviltamento do próprio verdugo e para a paz interior que será inexoravelmente perdida. A ação é lícita? Talvez. Convém ao Espírito que busca a serenidade? Decerto que não. A máxima de Paulo age como um freio moral salvador.

Muitas vezes não quero fazer algo (lícito humano), mas a consciência nos alerta que devemos (conveniente divino). Em situação em que podemos ajudar alguém que nos magoou profundamente, nossa vontade imediata, amparada pelo instinto de autopreservação e por um entendimento humano distorcido de “justiça”, é de nos afastar. A omissão, neste caso, é socialmente lícita. No entanto, a consciência sussurra sobre a compaixão, sobre o perdão e sobre a nossa responsabilidade perante o bem que deixamos de praticar. Kardec nos lembra que “cada um responderá por todo o mal que tiver ocorrido por causa do bem que deixou de fazer” (“O livro dos Espíritos”, item 642). Seguir por este caminho, o da retidão de valores, é optar pelo que convém ao nosso progresso. É “fazer o bem no limite das próprias forças”, como também nos ensina Kardec na mesma passagem.

Muitas vezes reconhecemos o ideal, mas ainda não temos forças para vivê-lo plenamente: Este é o campo da luta íntima, onde reside a pedagogia divina. Queremos ser pacientes, mas a impaciência nos domina; desejamos ser humildes, mas o orgulho ainda se levanta. Essa batalha não é um fracasso, mas o palco do nosso crescimento espiritual. A consciência já identifica o alvo (o que convém), mas a vontade ainda está em processo de educação. Como nos ensina Kardec em toda a sua obra, o progresso é um processo de esforço, persistência e sacrifício, e não ocorre de sobressaltos. A proposta espírita é a substituição da culpa pela responsabilidade. A culpa que frequentemente sentimos é o alarme da alma, um sinal de que nos afastamos da rota ideal traçada pelas leis divinas. É um chamado ao reajuste. No entanto, ela nos imobiliza no passado. A responsabilidade nos impulsiona à ação reparadora no presente e no auxilia a olhar para o futuro.

A tríplice alavanca para a harmonização interior: educar, disciplinar e definir

Para harmonizar a licitude humana com a conveniência divina e, consequentemente, erradicar as causas do sofrimento, Joanna de Ângelis nos apresenta três recursos hábeis para o sucesso: a educação do pensamento, a disciplina dos hábitos e a segurança das metas. Estes três pilares constituem uma metodologia segura para operacionalizar o “nem tudo me convém” em nossa vida cotidiana.

A educação do pensamento é a base de toda transformação. É um caminho fundamental para a cessação do sofrimento. Esse sofrimento é, em grande parte, fruto de padrões mentais negativos: medos, culpas, ressentimentos, crenças limitantes, etc. A educação do pensamento atua em várias frentes para nos capacitar a escolher o que verdadeiramente nos convém. O autoconhecimento nos permite identificar os padrões mentais negativos que nos levam a optar pelo lícito prejudicial. Compreender por que somos atraídos por certas condutas, mesmo sabendo que não são as melhores, é o primeiro passo para superá-las. 

A mudança de perspectiva nos ensina a reinterpretar os desafios da vida. Um obstáculo deixa de ser uma punição e se transforma numa oportunidade de aprendizado, uma oportunidade de reflexão que muito contribui para uma correta avaliação dos atos. Por fim, a reprogramação mental positiva é a prática constante de substituir o “eu não consigo” por “vou me esforçar”; o “eu sou um fracasso” por “eu posso aprender com este erro”; o medo do futuro pela confiança na divina providência. É transformar a autocrítica em autoaceitação responsável empreendendo esforços para se tornar melhor.

A disciplina dos hábitos é o amor em ação. De nada adianta um pensamento educado se ele não se traduz em ações concretas. A disciplina dos hábitos é a materialização do pensamento reformulado. E o grande regulador dessa disciplina é o Amor, que dulcifica o ser e incita-o às atitudes edificantes. A regra de ouro de Jesus é: só fazer ao seu próximo o que gostaria de experimentar. É o filtro inicial e fundamental. Antes de qualquer ação, perguntarmo-nos: “Gostaria que fizessem isto comigo?”. A empatia ativa é o passo além. É colocar-se no lugar do outro, buscando compreender seu ponto de vista e seus sentimentos, e agir de forma a promover sua felicidade, mesmo que isso contrarie nossas preferências pessoais. Inclui-se, ainda, como parte essencial da disciplina dos hábitos o perdão e o autoperdão. 

A segurança das metas nos proporciona o sentido que orienta a caminhada e fornece o sentido e a direção que impedem a dispersão e a estagnação, fontes de ansiedade e sofrimento. Quando uma pessoa estabelece metas seguras e alinhadas com sua evolução espiritual, ela fortalece sua vontade e adquire resiliência para enfrentar os desafios. As metas espirituais como o cultivo da paciência e a prática da caridade funcionam como um norte para a mente e o Espírito. Elas impedem que nos percamos nos labirintos dos atalhos lícitos, porém inconvenientes. Ter a meta clara de se tornar hoje melhor do que fomos ontem, e, amanhã, melhor do que fomos hoje é a bússola que nos mantém no caminho sólido, ainda que difícil.

A Liberdade na Escolha do que Convém

A jornada de compreensão e aplicação do “nem tudo me convém” é, em sua essência, um processo de libertação. Libertação da tirania dos costumes cegos, da pressão social e da escravidão aos nossos próprios impulsos inferiores. Cada vez que, guiados pela consciência e armados com a educação do pensamento, a disciplina dos hábitos e a segurança das metas, escolhemos o conveniente divino sobre o lícito humano, damos um passo irreversível em nosso progresso.

A Doutrina Espírita, com sua visão racional e consoladora, ensina que o Espírito não retrograda. Conforme “O livro dos Espíritos” (item 118), vemos: “Quando o Espírito concluiu uma prova, adquiriu conhecimento e não mais o perde”. Cada escolha correta, cada resistência a um atalho sedutor, consolida em nosso Espírito uma força moral permanente.

Portanto, “Tudo me é lícito, mas nem tudo me convém” é o grande convite à autorresponsabilidade, à coragem de viver com coerência e à fé inabalável de que a única licitude que verdadeiramente liberta e conduz à plenitude é aquela que está em harmonia com as Leis de Amor, Justiça, Caridade e de Evolução. É na fidelidade a essa Lei Maior que encontramos a verdadeira cessação do sofrimento e a conquista da paz interior, que é o presságio da felicidade eterna.

Fontes:

Almeida. “Bíblia on line”. Disponível em <https://www.bibliaonline.com.br/ara >. Acesso em 30. Out. 2025.

Franco, D. P. (1991). “Plenitude”. Ditado pelo Espírito Joanna de Ângelis. Niterói: Arte e Cultura.

Kardec, A. (2004). “O livro dos Espíritos”. Trad. J. Herculano Pires. 64. Ed. São Paulo: LAKE.

Imagem de Gerd Altmann por Pixabay


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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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