Livre Pensamento ou Controle: atualidade das advertências de Allan Kardec, por João G. Afonso Filho

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Livre Pensamento ou Controle: atualidade das advertências de Allan Kardec

João G. Afonso Filho

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A proposta de Kardec é profundamente vinculada ao livre-pensamento em seu sentido mais elevado. Não podemos aceitar passivamente a transformação do Espiritismo em uma religião com estrutura de poder centralizado, à semelhança do catolicismo histórico. O espírita não deve sentir-se ameaçado ou obrigado a seguir diretrizes que destoam da obra de Kardec.

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Na década de 1980, durante uma reunião do Conselho Regional Espírita (CRE) de uma tradicional região de Minas Gerais, discutiu-se a necessidade de revisar ou reestruturar o Movimento Espírita local. Na tentativa de promover a descentralização do CRE, sua coordenação foi transferida, de forma provisória, por um período de dois anos. No entanto, a pressão contrária mostrou-se intensa e, ao final desse tempo, a centralização retornou de maneira definitiva à cidade “sede”.

Conforme registrado na ata da 81ª reunião do referido CRE: “A mudança da sede fixa para a sede móvel confrontava o dispositivo do Estatuto da UEM” (União Espírita Mineira).

Observava-se, naquela época – como ainda se observa hoje – uma centralização excessiva, acompanhada de uma burocracia que, ao nosso ver, se distancia dos objetivos originais propostos por Allan Kardec.

Nas discussões travadas à época com outros irmãos de ideal, sustentamos que a centralização do poder era – e continua sendo – incompatível com as diretrizes espíritas, conforme claramente exposto na “Revue Spirite”, de dezembro de 1868, no artigo “Constituição Transitória do Espiritismo”.

Vejamos:

O Espiritismo tem princípios que, em razão de se fundarem nas leis da Natureza, e não em abstrações metafísicas, tendem a tornar-se, e certamente tornar-se-ão um dia, os da universalidade dos homens. Todos os aceitarão, porque serão verdades palpáveis e demonstradas, como aceitaram a teoria do movimento da Terra;

Mas pretender que o Espiritismo em toda parte seja organizado da mesma maneira; que os espíritas do mundo inteiro sejam sujeitos a um regime uniforme, a uma mesma maneira de proceder; que eles devam esperar a luz de um ponto fixo no qual deverão fixar o olhar, seria uma utopia tão absurda quanto pretender que todos os povos da Terra um dia não formem senão uma nação, governada por um único chefe, regida pelo mesmo código de leis e sujeita aos mesmos costumes.

Apesar das claras orientações de Kardec, a maioria das instituições espíritas de hoje venera o título de “Casa Máter”, tanto no setor municipal quanto nos âmbitos estadual e federal. O argumento é sempre o mesmo: o Pacto Áureo – para nós, “uma dominância clerical disfarçada”.

Este episódio marcou profundamente a nossa trajetória. Representou um divisor de águas, impulsionando-me a adotar uma visão mais independente e aberta acerca da proposta espírita.

Vale lembrar ainda que Kardec, em janeiro de 1868, no artigo “Olhar retrospectivo sobre o movimento espírita”, na “Revue Spirite”, trata de um tema que permanece atual. As reflexões ali contidas se aplicavam à realidade mineira dos anos 1980 e se estendem, em minha visão, às experiências vividas posteriormente aqui na Paraíba (embora isso fique para outro momento).

No texto, o Professor francês destaca a importância do surgimento contínuo de “livres pensadores”, assim definidos como: 

os que não se sujeitam à opinião de ninguém em matéria de religião e de espiritualidade, que não se julgam ligados pelo culto em que o nascimento os colocou sem seu consentimento, nem obrigados à observação de quaisquer práticas religiosas.

Esta qualificação não especifica nenhuma crença determinada. Ela pode ser aplicada a todas as nuanças do espiritualismo racional, tanto quanto à mais absoluta incredulidade. Toda crença eclética pertence ao livre pensamento; todo homem que não se guia pela fé cega é, por isto mesmo, livre-pensador.

Kardec, então, arremata: “Sob este ponto de vista, os espíritas também são livres-pensadores”. Dizemos nós: deveriam e devem ser!

Assumo, portanto, o entendimento de que a proposta de Kardec é profundamente vinculada ao livre-pensamento em seu sentido mais elevado. Não podemos aceitar passivamente a transformação do Espiritismo em uma religião com estrutura de poder centralizada, à semelhança do catolicismo histórico. O espírita não deve sentir-se ameaçado ou obrigado a seguir diretrizes que destoam da obra de Kardec.

É preciso cultivar uma postura racional – até mesmo cética – que respeite a razão e preserve a liberdade de consciência. No fundo, isso é exercitar o verdadeiro livre-pensamento, mantendo-nos atentos para que esse mesmo exercício da razão não se transforme em intransigência. Bom senso sempre!

Voltando a esse último artigo kardeciano, percebo também uma crítica sutil – porém, clara – à intolerância disfarçada de liberdade. Ele observa que alguns, em nome da razão, usam o livre pensamento como escudo para combater toda forma de espiritualidade, o que é incompatível com o verdadeiro espírito da liberdade de consciência.

Por outro lado, na “Revue Spirite”, de dezembro de 1861, na dissertação “Organização do Espiritismo”, Kardec já orientava: “Cabe aos espíritas falarem abertamente do Espiritismo, sem afetação e, sobretudo, sem buscar forçar convicções nem fazer prosélitos a todo custo”.

O Professor Herculano Pires reforça esse entendimento, afirmando no livro “O Centro Espírita”:

O Espiritismo não é proselitista, não entra na disputa sectária de adeptos das religiões, mas devem os espíritas, necessariamente, interessar-se pelos que se interessam pela Doutrina. Esclarecer e orientar sempre é dever espírita. 

Mas como está, hoje, a recepção nas casas espíritas? Ainda se busca esclarecer com liberdade e fraternidade, ou há, por vezes, imposições doutrinárias travestidas de zelo?

Estamos em 2025, e Kardec permanece extraordinariamente atual, preciso e ético em relação à Doutrina Espírita e ao Movimento que ele propôs, inspirado pelos Espíritos Superiores.

Para concluir, lembro com reverência suas palavras, pronunciadas em 14 de outubro de 1861, e inseridas na “Revue Spirite”, de novembro  daquele ano, em “Discurso do Sr. Allan Kardec”:

Coisa séria é confiar a alguém a suprema direção da doutrina. Antes de fazê-lo, é preciso estar bem seguro desse alguém sob todos os pontos de vista, porque, com ideias errôneas, poderia arrastar a Sociedade por uma rampa perigosa, e talvez à sua ruína.

Então, dizemos: – Oh, Minas Gerais!

Imagem de Hello Cdd20 por Pixabay


Edição: Julho de 2025

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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