Por Manoel Fernandes Neto e Nelson Santos
Estar diante da realidade é um ato de destemor. Perigos em cada esquina, guerras, corpos dilacerados, crianças famintas. Ditadores e enganados. Impostores e fanáticos. A atualidade nos ameaça. Muitas vezes mórbida; outras vezes, dóceis e enganadoras em redes sociais. Submissão é a aposta do envelhecido sistema: “Ei, você merece!”: mortos que voltam por meio da IA, falsas dádivas descartáveis, inverídicos mundos imaginários, indigestos quitutes que distraem. O atual Planeta ferve e nos oferece de presente a rendição. Quem se atreve?
O Coletivo ECK subverte a ordem. Dentro e fora do Espiritismo, desafiamos a mesmice, renegamos quem nos oferta a náusea constante, porque a covardia não é uma opção. Sabemos: ou resistimos ou não haverá o amanhã! Na Revista Harmonia, mergulhamos em elucubrações atemporais. O presente é agora. O futuro será em outros mundos; mas, também, nesse! Kardec e Bauman conversam no jardim. Quem se atreve a nos destruir?
O Coletivo ECK é pensamento em si, mas também em cada edição da Harmonia: uma ideia pulsante, viva há 40 anos, uma quase utopia que NÃO se esgueira pelas sombras. Vivemos em um mundo que insiste em não querer ser destruído.
O cantor Nando Reis, na música “Rock’n roll” — em criação de 2018 —, diz cantar diante de infinitas anomalias da sociedade: fome, poluição, gases no céu, detritos nos mares e rios, prisões, fanatismos, salvadores, fundamentalistas, incongruências, uma nuvem de destruição que clama a harmonia da nossa resistência. O mundo já não é aquele mesmo em que o artista nasceu — ele, e todos nós! —, mas continuamos curando a tristeza com ações insistentes de criar, amar e cantar.
Nesta edição, mostramos que esse amor é traduzido em reflexões incomuns e atuais.
Abrindo a edição “Apreciações espíritas sobre a fome: A fome num país de farturas – as lições de Helder, Betinho, Boff, Lancellotti, Herculano, Chico… e quanto a nós?”, Marcelo Henrique navega com precisão sobre as fraturas sociais expostas e infligidas aos menos favorecidos, sejam por programas governamentais ou não governamentais, onde políticas alheias ao anseio não favorecem o equilíbrio necessário. Mas, se muitas são as fomes, raras são as iniciativas, tanto no campo social, como no democrático, leia-se aqui, por figuras não comprometidas com o bem estar comum, hoje tão em evidência, pelo desmando e devaneios de uma suposta elite mandatária, acompanhadas por um séquito espírita, com raras expressões humanistas.
Nossa edição prossegue com um alerta. Nas últimas décadas, por não dizer, do último século, permeia no meio espírita a interpretação romanceada, piegas, fantástica e dogmática, em afirmações tão distantes quanto deturpadas dos postulados filosóficos e científicos legados pelo pensamento kardeciano. Não se aplica a análise crítica e racional, tomando corpo a desfiguração dos fundamentos através da dramatização e literalidade desses textos. Portanto, torna-se preponderante a retomada do legado de Kardec cujo objetivo é a autonomia intelectual e espiritual do ser no mundo, conforme podemos apreciar em “A interpretação lúdica do Espiritismo”, de Marco Milani.
Em “Os espíritas exaltados na atualidade” de Ada P. Martins Correia, aborda que, se por um lado o advento da pandemia incrementou vários grupos de estudos on-line e canais de transmissão, por outro favoreceu o proselitismo já existente, no comportamento usual em favorecer algum canal de difusão, bem como determinados livros e centros espíritas. Prosseguiu incrementando, sobremaneira, a face salvacionista e a supervalorização de manifestações mediúnicas sem critério avaliatório. Tais fatos contribuíram para o aumento dos espíritas exaltados, certos de serem eles os senhores da verdade e o caminho para a “salvação”. Ledo engano, por não ser a expressão do conteúdo fundamentado na Doutrina, ou seja, indo na contramão da lógica e da razão recomendada por Kardec.
Cláudio Bueno da Silva em “Reeducação alimentar” imerge nas relações filosóficas ambientais com a alimentícia, infringidas, principalmente, pelo cuidado com o corpo e estudos que deram a diretiva da dieta alimentar. Por outra sorte, esses estudos apontam variantes causadas pela contaminação e poluição nos alimentos que abastecem nossa mesa. Assim, esclarece que, para a reeducação alimentar ser efetiva, deve-se cuidar dos fatores que possam comprometer a qualidade. Nisso, enaltece a disposição de reavaliar o tipo de consumo de alimentos, permitindo-nos uma vida mais saudável e mais sintonizada com a espiritualidade.
A proposta de Kardec para o ser é de autonomia, com a liberdade de pensamento figurando como a diretriz contrária à dogmatização e à centralização que tomou de assalto o Espiritismo. João G. Afonso Filho, em “Livre Pensamento ou Controle: atualidade das advertências de Allan Kardec” aponta os conselhos do Professor francês para uma administração descentralizada, com pequenos grupos e realização de seminários, aspectos contraditórios com a proposta centralizadora adotada pelas federativas, no Brasil, notadamente após o malfadado Pacto Áureo, engessando e dogmatizando o Espiritismo, transformando sua estrutura em uma instituição similar às igrejas constituídas.
Em um mundo cada vez mais tecnológico, vislumbra-se a cristalização do pensamento, a supressão do eu por um pensamento dominante coletivo, fruto das mídias sociais, tolhendo a capacidade de livre pensar, em uma teia de difícil escape. Em consequência, o progresso individual torna-se uma questão secundária, patrocinando substituições afetivas, morais e psíquicas, artificiais e de um crescente risco ao progresso do ser. Assim, a alegoria da cristaleira, algorítmica, onde se coloca o brinquedo dos objetivos intangíveis, patrocinados por uma ambiência fantasiosa. Tal é o cerne de Wilson Custódio em “Cristaleira do Afeto: quando o brinquedo recria ausências”.
Maria Cristina Rivé, em “Após a Sede Líquida”, analisa a volatilidade do pensar, raso e imediatista do ser humano, em um mundo onde a tecnologia torna rápida a informação – boa e má – um marco na nossa existência; todavia, acaba se tornando o vazio existencial, onde não existe o tempo de maturação necessário à evolução das ideias. Troca-se, então, a base sólida da existência em efemeridade, tudo pelo ideal pasteurizado representado pelo meio midiático, vazio e sintético, traduzindo um proeminente perigo para aqueles que não se identificam com o arquétipo coletivo, este, tão contrário ao ser social que, até a pouco tempo, embalou o progresso.
Encerrando a edição, temos “Do Simples e Ignorante à Consciência Plena: um Diálogo Entre o Pensamento Espírita e as Ciências Evolutivas”, de Leonardo Paixão. Um artigo que nos brinda com o diálogo interdisciplinar entre Espiritismo, Filosofia e as Ciências Humanas.
Mais uma vez, então, prosseguimos em nossa jornada e reconhecemos que ainda é possível travar o combate com ideais originais e desafiadores. Enfrentando “Pastores e censores, delatores, promotores. Senadores, corruptores, grandes trocas de favores. Na maior hipocrisia e desfaçatez.”
Unidos a Nando Reis, também insistimos — com a atualidade de Kardec — em afinar o nosso Rock’n Roll.
And let the rocks roll! – Deixemos as pedras rolarem…
Boa leitura!
Imagem de wal_172619 por Pixabay
Edição: Julho de 2025
Editorial: A atualidade de Kardec e o “Rock ‘n roll”, por Manoel Fernandes Neto e Nelson Santos
Os espíritas exaltados na atualidade, por Ada P. Martins Correia
Livre Pensamento ou Controle: atualidade das advertências de Allan Kardec, por João G. Afonso Filho
Cristaleira do Afeto: quando o brinquedo recria ausências, por Wilson Custódio Filho