Leonardo Paixão
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A Doutrina dos Espíritos não se opõe à teoria darwiniana; ao contrário, complementa-a, oferecendo uma interpretação que transcende o materialismo estrito e propõe que o desenvolvimento biológico seja concomitante ao progresso espiritual.
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Resumo
Este artigo investiga o conceito espírita de que os Espíritos são criados “simples e ignorantes”, conforme proposto por Allan Kardec, e busca estabelecer um diálogo epistemológico com as ciências evolutivas — biologia evolutiva, paleoantropologia e antropologia evolutiva. Analisa-se como o desenvolvimento da consciência e da cognição, compreendido pelas ciências, pode dialogar com a visão espírita do progresso espiritual. A pesquisa adota abordagem qualitativa, fundamentada na análise documental e na revisão bibliográfica. Os resultados indicam que, embora partam de pressupostos distintos — espiritualistas no Espiritismo e materialistas nas ciências —, há convergências na compreensão de que a consciência é fruto de um processo evolutivo, contínuo e progressivo. O artigo contribui, assim, para o fortalecimento do diálogo interdisciplinar entre Espiritismo, filosofia e ciências humanas.
Palavras-chave: Espiritismo; Evolução; Consciência; Antropologia Evolutiva; Biologia Evolutiva; Filosofia da Mente.
1. Introdução
A compreensão da origem, desenvolvimento e finalidade do ser tem sido, historicamente, objeto de reflexão tanto das tradições religiosas quanto das ciências contemporâneas. No campo do pensamento espírita, codificado por Allan Kardec no século XIX, destaca-se a afirmação de que os Espíritos foram criados “simples e ignorantes”, conforme descrito nas questões 115 a 128 de “O livro dos Espíritos” (Kardec, 2008). Este conceito fundamenta a visão espírita do progresso espiritual, segundo a qual cada Espírito, partindo de um estado primitivo, desenvolve progressivamente suas faculdades intelectuais e morais, rumo à perfeição relativa.
Ao mesmo tempo, as ciências naturais — especialmente a biologia evolutiva, a paleoantropologia e a antropologia evolutiva — vêm, desde o século XIX, construindo modelos robustos que explicam a emergência da vida, da consciência e da cultura humana a partir de processos evolutivos graduais, fundamentados em evidências empíricas.
Este artigo propõe-se a realizar um exercício epistemológico e interdisciplinar, colocando em diálogo o conceito espírita de “simples e ignorante” com os referenciais teóricos e empíricos das ciências materiais. Busca-se, assim, compreender se — e em que medida — a proposta espírita dialoga, complementa ou se distancia dos paradigmas científicos contemporâneos que estudam a emergência da consciência e da cognição humanas.
A metodologia adotada fundamenta-se na análise documental dos textos espíritas fundamentais e na revisão bibliográfica de autores representativos das ciências evolutivas. O artigo não pretende oferecer respostas conclusivas, mas contribuir para uma reflexão madura e fundamentada, tanto no campo dos estudos espíritas quanto no das ciências humanas e naturais.
2. O Conceito de “Simples e Ignorante” no Pensamento Espírita
Na Doutrina Espírita, o conceito de Espírito é: um princípio inteligente distinto do corpo, que progride através de reencarnações, sendo uma incógnita o modo de sua criação (“O livro dos Espíritos”, item 78).
Adiante, nas questões 115 a 128 da mesma obra, Allan Kardec apresenta o princípio segundo o qual todos os Espíritos são criados “simples e ignorantes”, ou seja, destituídos de conhecimentos, mas dotados de potencial ilimitado para o progresso intelectual e moral.
Para os Espíritos Codificadores, não há a criação de seres destinados ao bem ou ao mal desde sua origem. Todos partem de uma mesma condição primitiva e, por meio do uso do livre-arbítrio, da experiência e do desenvolvimento das faculdades intelectivas e morais, constroem seus próprios destinos, progredindo até alcançar a perfeição relativa.
Essa concepção rompe com os paradigmas teológicos clássicos que admitiam a existência de seres criados perfeitos ou decaídos. Ao invés disso, estabelece uma visão dinâmica, progressiva e pedagógica da vida espiritual destituindo, desse modo, o terror que estava estabelecido pela dogmática cristã.
3. As Ciências Evolutivas e a Emergência da Consciência
3.1 Biologia Evolutiva: da Vida Simples à Complexidade
A biologia evolutiva, fundamentada nos trabalhos de Charles Darwin (1859) e em desenvolvimentos posteriores, descreve a vida como fruto de processos graduais de variação, seleção natural e deriva genética. Organismos simples, unicelulares, surgidos há cerca de 3,5 bilhões de anos, deram origem, por sucessivas complexificações, a seres multicelulares e, eventualmente, aos vertebrados e mamíferos.
Kardec (2018:216-217), buscando acompanhar o desenvolvimento científico em sua época, traz o seguinte:
Quem conhece o segredo de todas as transformações? Quando se vê o carvalho e a bolota (semente do carvalho), quem poderá dizer que não há um elo misterioso entre o pólipo e o elefante?
[…]
Entre os reinos vegetal e animal não há delimitação nitidamente traçada. Na fronteira dos dois estão os zoófitos ou animais-plantas cujo nome indica que participam de um e do outro: é um traço de união.
Como os animais, as plantas nascem, vivem, crescem, nutrem-se, respiram, reproduzem-se e morrem. Também necessitam de luz, calor e água. Faltando esses elementos, definham e morrem. A absorção de um ar viciado e de substâncias deletérias as envenena. Sua característica distintiva mais marcante é a de estarem fixadas ao solo e de aí retirarem sua nutrição, sem se deslocarem.
O zoófito tem aparência exterior da planta. Como planta, ele se atém ao solo. Como animal, a vida nele é mais acentuada; ele tira sua nutrição do meio ambiente.
Um grau acima, o animal está livre e vai procurar seu alimento; inicialmente são as inumeráveis variedades de pólipos, em corpos gelatinosos, sem órgãos distintos e que só se diferem das plantas pela locomoção; depois, seguindo a ordem do desenvolvimento dos órgãos, da atividade vital e do instinto: os helmintos ou vermes intestinais; os moluscos, animais carnosos, sem osso, dos quais uns são nus, como as lesmas, as polpas ou os polvos, outros são revestidos de conchas, como os caramujos, as ostras. Depois vem os crustáceos, cuja crosta é revestida de uma casca dura, como os caranguejos e as lagostas; os insetos, nos quais a vida toma uma atividade prodigiosa e se manifesta o instinto industrioso, como a formiga, a abelha, a aranha. Alguns sofrem metamorfose, como a lagarta, que se transforma em elegante borboleta. Vem, a seguir, a ordem dos vertebrados, animais com esqueleto ósseo, que compreende os peixes, os répteis, os pássaros e, por último, os mamíferos, cuja organização é a mais completa. (Cap. X, itens 23 e 24).
Essa perspectiva estabelece pontos de contato diretos com a Teoria da Evolução por seleção natural, proposta por Charles Darwin em “A Origem das Espécies” (1859). Ambos os pensadores rejeitam o fixismo das espécies — paradigma dominante na ciência e na teologia até meados do século XIX — e advogam que os seres vivos estão submetidos a processos de transformação contínuos, sem saltos abruptos na natureza. Kardec recorre, inclusive a analogia entre a bolota e o carvalho, que ilustra com precisão esse conceito.
No entanto, embora haja uma notável convergência quanto à constatação do fato da evolução e do gradualismo biológico, é necessário destacar que Kardec e Darwin partem de referenciais epistemológicos distintos. Darwin propôs um mecanismo específico, naturalista, denominado seleção natural, em que as variações herdáveis que conferem vantagem adaptativa aos indivíduos tendem a ser preservadas nas gerações subsequentes. Nesse modelo, as transformações das espécies ocorrem como resultado da interação entre variação genética, reprodução diferencial e herança, sem a necessidade de postular qualquer finalidade ou princípio extrafísico.
Por outro lado, Kardec insere o fenômeno biológico dentro de uma cosmovisão espiritualista, na qual a evolução material está intimamente ligada ao progresso do princípio inteligente que anima os seres. Para o Espiritismo, não se trata apenas da transformação dos corpos, mas do desenvolvimento simultâneo das faculdades intelectuais e morais, à medida que o Espírito progride por meio de múltiplas experiências reencarnatórias. Assim, embora Kardec não discuta os mecanismos biológicos específicos — como mutações, deriva genética ou seleção natural —, sua visão é compatível com o panorama evolutivo delineado pelas ciências naturais, às quais ele reconhece plena legitimidade no campo dos fenômenos físicos.
É, portanto, legítimo afirmar que o pensamento kardecista, desde o século XIX, antecipava conceitos fundamentais da biologia evolutiva moderna, ao mesmo tempo em que os integrava em uma visão ampliada, que abarca não apenas a matéria, mas também os destinos do Espírito imortal. Dessa forma, a Doutrina dos Espíritos não se opõe à teoria darwiniana; ao contrário, complementa-a, oferecendo uma interpretação que transcende o materialismo estrito e propõe que o desenvolvimento biológico seja concomitante ao progresso espiritual.
3.2 Paleoantropologia: o Surgimento do Gênero Homo e Uma Possível Correlação com os Ensinos dos Espíritos
A paleoantropologia, através de registros fósseis e dados genéticos, reconstrói a trajetória do gênero Homo, que surgiu há cerca de 2,5 milhões de anos. A transição de hominídeos como o “Australopithecus” para espécies como “Homo habilis”, “Homo erectus” e, finalmente, “Homo sapiens”, demonstra um processo de aumento do volume cerebral, desenvolvimento da linguagem e da cultura simbólica.
Em “O livro dos Espíritos”, nas questões 47, 52, 53 e 53a, temos respostas que trazem como que esboços de uma teoria evolutiva. No livro “A Gênese”, Kardec (2018:218) amplia a proposta – a ciência estava progredindo – conforme podemos observar:
Por pouco que se observe a escala dos seres vivos, sob o ponto de vista do organismo, reconhece-se que, desde o líquen até as árvores, e desde o zoófito até o homem, existe uma cadeia que se eleva, gradativamente, sem solução de continuidade, e da qual todos os elos têm um ponto de contato com o elo precedente. Acompanhando passo a passo a série de seres, pode-se dizer que cada espécie é um aperfeiçoamento, uma transformação da espécie imediatamente inferior. Uma vez que o corpo do homem está, nas condições idênticas aos outros corpos, química e constitucionalmente, já que nasce, vive e morre da mesma maneira, ele deve ser formado nas mesmas condições.
Ainda que isso possa ferir seu orgulho, o homem deve se resignar a ver em seu corpo material o último elo da animalidade sobre a Terra. […] (Cap. X, 27 e 28, grifos do original).
O que nos trazem os estudos da paleoantropologia atual?
Até recentemente, o registro fóssil do Sapiens era simples: além dos dois crânios com nomes quase predestinados de Omo-1e Omo-2, datados de 196 mil anos atrás e encontrados no vale do Omo, Etiópia, não conhecíamos senão um crânio incompleto, com 285 mil anos de idade, descoberto em Florisbad, na África do Sul e alguns fragmentos de crânio de 125 mil anos atrás, encontrados nas grutas do Rio Klasies, no mesmo país. Eles comprovam a presença na África, há cerca de 285 mil anos, de uma forma humana de testa larga. Desde então, a situação se complicou seriamente…
Em 2008, Misliya-1, uma metade esquerda de mandíbula datada de 177 mil a 194 mil anos, foi descoberta no Monte Carmelo, em Israel. Depois, em 2017, foi realizado novo exame do sítio Jebel Irhoud, no Marrocos. Estes últimos fósseis têm uma longa história. Foram revelados nos anos 1960, acompanhados de ferramentas talhadas com a técnica Levallois, até então exclusivamente associada ao Neandertal, antes de os qualificar como “Neandertaloides”, pois algumas partes de seus crânios os distinguiam dos Neandertais europeus. Finalmente, após a descoberta de uma mandíbula nos anos 1990, os paleoantropólogos os separaram dos Neandertais.
Esse esclarecimento explica por que, a partir dos anos 2000, uma equipe dirigida por Jean-Jacques Hublin, do Instituto Max-Planck de Antropologia Evolucionista de Leipzig, Alemanha, retomou o estudo do sítio e do material fóssil. Em 2017, novos métodos de análise salientaram que os humanos de Jebel Irhoud eram Sapiens arcaicos. Ora, sua nova datação, através de toda uma séria de métodos independentes (as ferramentas que os acompanhavam, os estratos que continham), produziu um resultado alucinante: 315 mil anos!
Um resultado tão inquietante que criou um certo ceticismo entre vários pré-historiadores… Um fato persiste: ele mudou a visão que se faz sobre a emergência do H. sapiens. A presença de Sapiens arcaicos no norte da África há cerca de 300 mil anos, na verdade, faz caducar a ideia de um berço dos Sapiens e sugere uma presença panafricana desse humano. (Condemi e Savatier, 2019:92-93)
A recente descoberta sobre “Sapiens” arcaicos a sugerir uma presença panafricana nos leva a considerar a seguinte pergunta (e sua resposta), de “O livro dos Espíritos” (Kardec, 2004:67):
- O homem apareceu em muitos pontos do globo?
– Sim e em diversas épocas, e é essa uma das causas da diversidade das raças; depois, o homem se dispersou pelos diferentes climas, e aliando-se os de uma raça aos de outras, formaram-se novos.
Os estudos sobre a miscigenação entre o Neandertal e o Sapiens nos trazem sobre os novos tipos que se formaram:
[…] é provável que os Sapiens tenham progredido rumo à Sibéria e o que viria a ser a Rússia, antes de seguir para a Europa. Com aproximadamente 45 mil anos, a tíbia de Ust-Ishim, na Sibéria, pertence a um Sapiens, cujos ancestrais se miscigenaram com os Neandertais por volta de 15 mil anos mais cedo. Os genes de um homem jovem morto há uns 36 mil anos no sítio de Kostenki 14, na Ucrânia, sugerem por sua vez uma miscigenação prévia entre Neandertais e Sapiens, algo em torno de 60 mil anos atrás. (Condemi e Savatier, 2019:118)
Os neandertais viveram na Europa e na Ásia Ocidental por centenas de milhares de anos antes de seu desaparecimento há cerca de 40 mil anos (ka). Nos últimos milhares de anos de sua existência documentada, os neandertais se encontraram e cruzaram com humanos modernos que chegaram da África e, como resultado, 2–3% da ancestralidade dos atuais não africanos derivam dos neandertais.
Até agora, apenas cinco locais produziram dados de todo o genoma de humanos modernos que viveram antes de 40-ka e, portanto, se sobrepuseram temporalmente aos neandertais. A ancestralidade neandertal nos genomas de dois desses locais provavelmente se originou de apenas um único evento de introgressão (ou seja, uma mistura com neandertais que pode ter continuado por várias gerações). No entanto, os genomas de indivíduos dos outros três locais mostraram evidências de eventos adicionais e mais recentes de introgressão neandertal. O genoma de alta cobertura do indivíduo Ust’-Ishim de aproximadamente 44 mil anos (kyr), um antigo habitante da Sibéria, mostra sinais para tal evento de introgressão adicional em torno de 30–50 gerações antes de o indivíduo viver. Uma análise semelhante mostrou que o indivíduo Oase 1 de Peștera cu Oase, Romênia, com aproximadamente 40 mil anos de idade, e quatro indivíduos datados de cerca de 44 mil anos de Bacho Kiro, Bulgária, tinham ancestrais neandertais provavelmente nas últimas 10–20 gerações antes de viverem. Por outro lado, nenhuma evidência de misturas adicionais foi encontrada para o indivíduo Tianyuan de 40 mil anos da China ou o indivíduo Zlatý kůň da República Tcheca. Embora a datação direta por radiocarbono tenha produzido resultados não confiáveis para Zlatý kůň, os comprimentos dos segmentos de ancestralidade neandertal no genoma indicaram uma idade de pelo menos 45 mil anos.
Com exceção do indivíduo Tianyuan, que fazia parte da população ancestral dos asiáticos orientais, todos os indivíduos mencionados anteriormente não demonstraram nenhuma, ou, no máximo, uma contribuição direta limitada, para a ancestralidade de populações extra-africanas posteriores. Notavelmente, o indivíduo Zlatý kůň pertencia a uma população profundamente divergente que se separou da linhagem que levava aos não africanos antes de qualquer outra população extra-africana antiga ou atual conhecida, sendo atualmente o único representante desse ramo inicial (Sümer, A. P.; Rougier, H.; Villalba-Mouco, V. et al. Os primeiros genomas humanos modernos limitam o tempo de miscigenação neandertal. Nature 638, 711–717).
3.3 Antropologia Evolutiva, Sociologia e Espiritismo: a Construção da Moralidade
Michael Tomasello aponta que a cooperação, a empatia e a construção de regras sociais são elementos chaves na evolução do comportamento humano. A capacidade de partilhar intenções, desenvolver normas coletivas e construir cultura são os diferenciais do “Homo sapiens” em relação a outros primatas.
Condemi e Savatier (2019:95-96) abordam como a intensificação da vida social e a necessidade de interagir em grupos cada vez maiores e mais complexos exerceram uma pressão seletiva sobre o cérebro do “Sapiens”:
O comportamento do H. sapiens é singular: ele subjugou todo o planeta e transformou profundamente a maior parte dos ecossistemas, chegando a influenciar o clima global… Onde se ocultam as chaves para entender esse comportamento? Em nossa opinião, no plano biológico, nada de impressionante é suscetível de explicar a singularidade do Sapiens. Uma ideia difundida – por exemplo, no livro Sapiens de Yuval Noah Harari – é a de que teria havido uma “revolução cognitiva” que distinguiria o Sapiens de outros humanos. Nós consideramos falsa essa ideia, pois, nas mesmas épocas, o Neandertal e o Sapiens possuíam habilidades técnicas de mesmo nível (mesma cultura material), falavam e empregavam linguagens simbólicas (adornos, pinturas, etc.). Ainda que inúmeros aspectos do corpo do Neandertal tenham sido diferentes – sua aparência em geral (atarracado), seu rosto (semelhante a um focinho), a forma de seu crânio (como uma bola de rúgbi), etc. –, os volumes cerebrais das duas espécies eram comparáveis (com vantagem para o Neandertal). Só bem mais tarde, quando o Sapiens já conquistou o planeta, que o desenvolvimento de sua vida social dará início à remodelagem de seu cérebro.
O desenvolvimento da moralidade – entendido no contexto espírita como parte essencial da progressão do princípio inteligente –, encontra respaldo teórico na sociologia de Émile Durkheim. Em “As Formas Elementares da Vida Religiosa” (1912), o autor demonstra que a consciência moral surge a partir da vida coletiva, estruturando-se nas regras e obrigações que a sociedade impõe aos seus membros. Durkheim afirma que “a sociedade é não apenas aquilo que nos rodeia, mas aquilo que penetra em nós; ela é em nós, ela molda nosso ser mais íntimo” (Durkheim, 1912). Tal concepção estabelece que a moralidade não é um atributo isolado do indivíduo, mas uma construção coletiva, transmitida por meio dos ritos, dos símbolos e das instituições sociais. Nesse sentido, “a obrigação moral não é mais do que a pressão que exerce sobre nós a autoridade da coletividade” (Durkheim, 1912, Livro III, cap. II), o que demonstra que os comportamentos tidos como éticos resultam da internalização das normas sociais. Essa leitura sociológica dialoga profundamente com a proposta espírita de que o espírito, criado “simples e ignorante”, progride através de sucessivas experiências no seio da coletividade, desenvolvendo paulatinamente suas faculdades intelectuais e morais. Assim, tanto para o Espiritismo quanto para Durkheim, a moralidade é fruto de um processo de aprendizado que se dá essencialmente no convívio social, onde o indivíduo é constantemente chamado a ajustar seus interesses pessoais às exigências do bem comum e da vida coletiva.
4. Diálogo Epistemológico: O Espírito e a Evolução Biológica
O conceito de “simples e ignorante”, na perspectiva espírita, pode ser compreendido como uma metáfora espiritual equivalente às fases primárias do desenvolvimento da consciência, tal como descrito pelas ciências evolutivas. Há, contudo, diferenças epistemológicas fundamentais: enquanto a biologia considera que a consciência emerge da matéria organizada, o Espiritismo sustenta que o Espírito preexiste à matéria e utiliza o corpo físico como instrumento de manifestação e aprendizado.
A hipótese de Kardec (2018:226-227) sobre a origem do corpo humano vem a explicar com sua abordagem, em termos metafísicos, a correlação Espírito-Matéria nos aspectos evolutivos:
Da semelhança de formas exteriores que existe entre o corpo do homem e o de um macaco, alguns fisiologistas concluíram que o primeiro é apenas uma transformação do segundo. Nisso não há nada de impossível e, se for assim, não há razão para que o homem sinta sua dignidade afetada. Os corpos dos símios podem, muito bem, ter servido de vestimenta aos primitivos Espíritos humanos, necessariamente pouco avançados, que vieram encarnar na Terra, porque eram as mais apropriadas às suas necessidades e as mais adequadas ao exercício de suas faculdades que os corpos de qualquer outro animal. Em vez de uma veste especial que tenha sido feita para o Espírito, ele teria encontrado uma pronta. Vestiu-se então com a pele do macaco, sem deixar de ser um Espírito humano, como o homem se reveste por vezes da pele de certos animais sem deixar de ser homem.
Fique bem entendido que aqui só se trata de uma hipótese que de nenhuma maneira se enuncia como princípio, mas que é apenas apresentada para mostrar que a origem do corpo não prejudica o Espírito, que é o ser principal, e que a semelhança do corpo do homem com o do macaco não implica na paridade entre seu Espírito e o dele.
Admitindo essa hipótese, pode-se dizer que, sob a influência e pelo efeito da atividade intelectual de seu novo habitante, o invólucro se modificou, embelezando-se nos detalhes, conservando no todo a forma geral do conjunto. Os corpos melhorados, ao procriarem, reproduziram-se nas mesmas condições, como acontece com as árvores enxertadas, e deram nascimento a uma nova espécie que, aos poucos, se distanciou do tipo primitivo, à medida que o Espírito progrediu. O Espírito simiesco, que não foi aniquilado, continuou procriando para seu uso corpos de macacos, do mesmo modo que o fruto da árvore silvestre reproduz árvores dessa espécie e o Espírito humano procriou corpos de homens variantes do primeiro molde em que se estabeleceu. O tronco se bifurcou; produziu um ramo, e este se tornou um tronco.
Como não existem transições bruscas na natureza, é provável que os primeiros homens que apareceram na Terra se diferenciavam pouco do macaco, na forma exterior e, sem dúvida, pouco também na inteligência. Há ainda, em nossos dias, selvagens que, pelo comprimento dos braços e dos pés, e a conformação da cabeça, tem tanta semelhança com os macacos que lhe faltam somente serem peludos para que a semelhança seja completa. (Cap. XI, 15 e 16).
Embora Kardec não tivesse acesso às teorias evolutivas modernas, sua hipótese metafísica encontra ressonância indireta em mecanismos biológicos hoje bem estabelecidos, como a transição de primatas arbóreos para hominídeos bípedes está associada a pressões adaptativas como a exploração de savanas (Hunt, 1994), o uso de ferramentas (Toth & Schick, 2009) e a cooperação grupal (Tomasello, 2014).
E é interessante observar que a família dos hominídeos inclui os humanos, os bonobos, os chimpanzés, os gorilas e os orangotangos, os hominídeos fósseis, as linhagens extintas dos “ardipithecus” e dos “australopithecos”.
Este paralelo é intrigante: o processo de hominização, pelo qual primatas adquiriram características humanas, pode ser lido tanto como adaptação material (via seleção natural) quanto, na perspectiva espírita, como estágio de adequação do corpo às necessidades do Espírito. Vale ressaltar que, enquanto a ciência explica essas mudanças por processos materiais, o Espiritismo as atribui à influência do Espírito – uma proposição metafísica que, como muitas questões da filosofia da mente, não é falseável pelos métodos científicos atuais, mas oferece narrativa coerente em seu marco teórico.
5. Considerações Finais
O presente artigo buscou refletir sobre o conceito espírita de “simples e ignorante” à luz das ciências humanas evolutivas. Observa-se que, apesar das distinções epistemológicas, há pontos de convergência significativos, especialmente no que diz respeito à compreensão de que a consciência, a inteligência e a moralidade são frutos de um processo evolutivo, contínuo e progressivo.
Embora Ciência e Espiritismo partam de pressupostos distintos sobre a natureza da consciência, o diálogo aqui proposto revela que ambos reconhecem um processo evolutivo gradativo – seja no plano biológico, seja no espiritual. Enquanto a paleoantropologia descreve a emergência da cognição humana a partir de hominídeos primitivos, o Espiritismo oferece uma narrativa teleológica em que a matéria serve ao desenvolvimento moral do Espírito. Futuros estudos poderiam investigar, por exemplo, como modelos não-materialistas da mente (ex.: pampsiquismo) medeiam esse debate, ou como a ideia de reencarnação poderia ser confrontada com dados genéticos e neurocientíficos.
Referências
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