Cristaleira do Afeto: quando o brinquedo recria ausências, por Wilson Custódio Filho

Tempo de leitura: 4 minutos

Wilson Custódio Filho

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Seja em cristaleiras ou em algoritmos, a ausência do afeto real continua a nos ensinar – com dor – que o desenvolvimento do Espírito passa inevitavelmente pela presença genuína, pelo vínculo sincero e pela ternura vivida, jamais simulada, e menos ainda por julgamentos.

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Uma frase intrigante de Silva (2020:40) nos inspira a uma análise profunda: “Se a humanização era uma lapidação, a desumanização só podia ser vista como um embrutecimento”, Silva (2020:40) [1].

Assim, em contraponto, compreendemos, à luz do pensamento kardecista, que a escalada do Espírito é sempre progressiva, ainda que lenta. Regredir ou degenerar, jamais – pois o Espírito pode estacionar, mas nunca retroceder (Kardec, 2028) [2].

No entanto, em um mundo cada vez mais permeado pela tecnologia, surgem episódios que parecem tensionar essa lógica evolutiva, deslocando afetos e vínculos para territórios artificiais. Esse cenário deslocado, associado ao espetáculo midiático das redes sociais, tende a ser cada vez mais forjado por uma intolerância pungente, que empareda os sentimentos.

Como nos alerta o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, radicado na Alemanha, vivemos uma época marcada pela exposição exacerbada e pelo esfacelamento do Eu, em que o Tu deixa de ser um mistério e passa a ser um reflexo de nós mesmos. Essa lógica, hiperintensificada pelas redes sociais e pelos meios de comunicação – por vezes tendenciosos – transforma os afetos em performance e os vínculos em espetáculo [3].

Sob esse prisma, o que se apresenta como avanço tecnológico pode, paradoxalmente, tornar-se um entrave ao progresso do Espírito, segundo a perspectiva kardecista, caso o indivíduo não aprenda a submeter tudo ao crivo da razão – bússola segura na senda do progresso.

Assim, em tempos em que a tecnologia avança com a promessa de suprir ausências e preencher afetos, os bebês reborn – bonecas hiper-realistas moldadas com traços de recém-nascidos – ressurgem como um símbolo inquietante. Não bastasse a semelhança estética, hoje já se integram a um mercado ainda mais complexo: o da inteligência artificial emocional. 

Alguns desses bonecos “respondem” ao toque, “choram”, “sorriem” e “dormem”, imitando os gestos mais íntimos de um bebê real. O que parecia ser apenas um brinquedo, passa a habitar fronteiras delicadas entre o conforto emocional e a ilusão, entre a ausência e a substituição simbólica do afeto.

Importa ressaltar: não se trata de um juízo, mas de uma provocação sensível sobre o afeto em tempos de simulacro.

Poderíamos nos aprofundar em diversos aspectos da polêmica atualmente vivenciada, que ocupa diferentes meios de comunicação, tanto em nível nacional quanto internacional. Por toda a parte, é só o que se fala. 

Debates, discussões, pesquisas científicas, abordagens meramente especulativas, posicionamentos favoráveis e contrários, julgamentos, absolvições e condenações – um leque de possibilidades se abre diante de nós.

No entanto, nosso foco permanece o ser humano, livre de populismos, sobretudo quando esses se apresentam carregados de preconceitos e intolerância, infelizmente ainda tão em voga.

Partimos do princípio de que cada ser humano é dono de uma história, escrita na escala do tempo, e, por isso, é merecedor de respeito e de uma análise detalhada. Como bem expressa a frase amplamente atribuída a Carl Gustav Jung [4]“Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana” (Origem não confirmada).

Mas o que esses corpos de vinil, dotados de sensores, diriam às infâncias aprisionadas em cristaleiras? 

Lembro-me dos tempos idos, quando ainda se vivia à sombra de uma educação rígida. Minha tia, ainda menina, ganhou de seu pai uma boneca – daquelas de plástico, comuns na época. Mas, ao invés de lhe entregar o brinquedo para brincar, ele a colocou cuidadosamente dentro de uma cristaleira e disse: “É sua, mas ficará aqui até que aprenda a brincar sem quebrar”.

Sempre que eu a visitava, notava o brilho contido nos olhos dela, fixos naquela boneca intocável. Era como se a alegria morasse atrás do vidro, fora do alcance. A menina, antes tão viva e sorridente, foi se recolhendo aos poucos. Retraiu-se. Fechou-se na própria concha.

O tempo passou. A menina cresceu, tornou-se adolescente. Mais tarde, foi mãe. Sofreu. Desenvolveu síndrome pós-parto – quem sabe, causada por um casamento arranjado. Perdeu parte da memória. Desencarnou…

E a boneca? Continuava lá, imóvel na cristaleira – intacta, como sempre. Um relicário mudo da infância e do afeto interditado!

O que está narrativa nos revela é que o afeto não pode ser guardado, simulado, substituído ou postergado. Ele precisa de presença, de toque real, de escuta e de liberdade. A boneca na cristaleira não simboliza apenas a infância negada, mas o afeto impedido, asfixiado por modelos de educação que confundem rigidez com formação. 

No extremo oposto, os reborns conectados (ou não) à inteligência artificial talvez representem o afeto que tenta ser recriado artificialmente, após também ter sido negado ou perdido.

Assim, tanto o objeto enclausurado no pretérito, quanto à simulação emocional do presente, se conectam numa mesma imagem simbólica: a tentativa psíquica humana de lidar com o afeto não vivido – seja por receio de quebrá-lo, seja por não saber mais como tocá-lo, de verdade.

No âmbito espiritual, o afeto é uma expressão direta do progresso moral, e não um substituto da presença. Allan Kardec, diga-se, advertia que o amor é uma lei natural e, quando negligenciado, entendemos que é o próprio porgresso que se interrompe. Amar é viver com o outro, não apenas representá-lo! 

Conta-se que, ao sugerirem a Gandhi que se recolhesse às cavernas, seus opositores ouviram como resposta que ele carregava a caverna dentro de si. E, assim, seguiu entre os homens, pois sabia que é no encontro com o outro que o Espírito se amplia.

Parafraseando reflexões que ecoam no inconsciente: a solidão verdadeira não se resolve com a fantasia da presença, mas sim, com a coragem do encontro!

Seja em cristaleiras ou em algoritmos, a ausência do afeto real continua a nos ensinar – com dor – que o desenvolvimento do Espírito passa inevitavelmente pela presença genuína, pelo vínculo sincero e pela ternura vivida, jamais simulada, e menos ainda por julgamentos.

Fontes:

[1] Silva, J. M. (2020). Humano, desumano, pós-humano, transumano. SIG – Revista de Psicanálise, 17(2), p. 1–10, jul./dez. 2020. Disponível em: <https://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/19216/2/HUMANO_DESUMANO_PSHUMANO_TRANSUMANO.pdf>. Acesso em: 26. Mai. 2025.

[2] Kardec, A. (2018). A Gênese: Os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo. Obra original de 1868. Trad. Carlos de Brito Imbassahy. São Paulo: FEAL. Cap. XI, item 49, p. 236.

[3] Han, B.-. (2015). Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas tecnologias de poder. Tradução de Lucas Zaparolli. Petrópolis: Vozes.

[4] Wikiquote. (2025). Carl Gustav Jung. Frase atribuída. Disponível em: <https://pt.wikiquote.org/wiki/Carl_Jung>. Acesso em: 26. Mai. 2025.

Imagem de Gerd Altmann por Pixabay


Edição: Julho de 2025

Editorial: A atualidade de Kardec e o “Rock ‘n roll”, por Manoel Fernandes Neto e Nelson Santos

A interpretação lúdica do Espiritismo, por Marco Milani

Os espíritas exaltados na atualidade, por Ada P. Martins Correia 

Reeducação alimentar, por Cláudio Bueno da Silva

Livre Pensamento ou Controle: atualidade das advertências de Allan Kardec, por João G. Afonso Filho

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Após a Sede Líquida, por Maria Cristina Rivé

Do Simples e Ignorante à Consciência Plena: um Diálogo Entre o Pensamento Espírita e as Ciências Evolutivas

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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