Como Kardec Faria?, por Aristides Coelho Neto

Tempo de leitura: 4 minutos

Aristides Coelho Neto

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Se Kardec, voltado à ciência e experimentação, não fosse um progressista, certamente não teria avançado pelos caminhos que desbravou.

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Se Jesus voltasse sem ser por meio da Doutrina Espírita, mas, sim, fisicamente, como seria? Frequentemente aventamos essa hipótese, numa avaliação de nossa postura espírita.  E se o mesmo acontecesse com Kardec? Como seria? Ele daria retoques na Doutrina? Iria complementá-la de que forma? Adaptá-la-ia aos tempos modernos?

Alguns até dizem que Kardec já veio.  Afirmam também que muitos nem se aperceberam disso… Fica difícil afirmar com certeza.  E acabamos por concluir que enveredar por tais conjecturas nem ajuda, nem chega a constituir um desserviço – simplesmente não deve alterar as nossas metas de crescimento.

Que a Doutrina Espírita está num processo de crescimento, não tenho dúvidas.  O caráter dinâmico da Doutrina foi externado por Kardec em muitas oportunidades. No que se refere ao retorno de Kardec ao nosso convívio pelo envoltório físico, vale lembrar que houve praticamente uma fixação da época em que isso ocorreria (vide “Obras Póstumas” [2]).

Mas no que tange à adaptação do Espiritismo à realidade atual, havemos de convir que não poderia haver determinação temporal precisa.  Por isso, da mesma forma que “o terceiro milênio já começou” (a transição planetária que se processa [3]), podemos dizer que complementações à obra de Kardec – a palavra complementações deverá incomodar muita gente! – também estão se processando.  A dificuldade que se afigura é: como passá-las pelo crivo do bom senso.

O detalhamento da obra basilar da Doutrina pela mediunidade e dedicação de Chico Xavier é uma prova contundente de que cinco das obras de Kardec (se considerarmos “O que é o Espiritismo” e “Obras Póstumas”, seriam sete [4]) não conseguiram abranger tudo que se fazia necessário para que o “Cristianismo Redivivo” pudesse brilhar em todo o seu esplendor.  Adelino da Silveira, em seu livro “Kardec Prossegue”,  fala-nos das pressões que, naturalmente, foram exercidas sobre a obra nascente do Espiritismo, impondo a Kardec uma abordagem tímida – se assim podemos dizer – quanto à parte religiosa.

E agora? Podemos concluir que a Doutrina parou, ou vai parar por aí? Fecham-se as suas portas? Não seria racional acatarmos essa premissa! Estaríamos pregando o retrocesso e conferindo-lhe um caráter estático que não combina com o arrojo do mestre Rivail.

Não devemos dissociar Espiritismo de Kardec. Assim, vale a pena continuarmos em nossa linha de raciocínio aludindo aos “ganchos” deixados pelo próprio Codificador, concernentes às características flexíveis e dinâmicas da Doutrina.

Sobre o caráter progressivo da Doutrina, Kardec assim se posiciona em “Obras Póstumas” (“Dos Cismas“):

Pelo fato de a Doutrina não se embalar com sonhos irrealizáveis, não se segue que se imobilize no presente. Apoiada tão-só nas leis da Natureza, não pode variar mais do que essas leis; mas se uma lei nova for descoberta, tem ela que se pôr de acordo com essa lei. Não lhe cabe fechar a porta a nenhum progresso, sob pena de se suicidar. Assimilando todas as idéias, reconhecidamente justas, de qualquer ordem, físicas ou metafísicas, jamais será ultrapassada, constituindo uma das principais garantias da sua perpetuidade.”

É com preocupação que vemos irmãos de caminhada apresentarem sérias deficiências de interpretação de conceitos ou fatos a que Kardec não fez referência em sua obra. “Kardec não disse isso, Kardec não disse aquilo…”, proclamam.  Bem, muitas vezes não disse porque não cabia dizer.

Kardec, referindo-se à conhecida proibição de Moisés aos hebreus, no sentido de não evocarem as almas dos mortos, observa que a proibição de se fazer uma determinada coisa implica a possibilidade de fazê-la. Cita:

Será necessário decretar-se uma lei proibindo a subida à Lua?” (“Viagem espírita em 1862”).

Talvez nem imaginasse que o homem daí a cem anos pisaria lá… Mas imaginava, isso sim, que a sua obra não ficaria ofuscada diante do brilho das transformações. Kardec não conseguiria falar de tudo, já que codificava uma doutrina para o futuro. E o que Kardec não disse – ora vejam! – tem confundido irmãos incautos, ávidos de tomar partidos, assumir posições, às vezes defensivas e cegas de guardiães dos postulados kardequianos. E é dentro dessa linha que, muitas vezes, tem-se julgado ou prejulgado conceitos novos.

Se já adentramos o terceiro milênio e as inovações tecnológicas avançam em progressão geométrica, e se admitimos que a Doutrina Espírita deverá acompanhar a marcha acelerada do contexto planetário em que está inserida, existiria data marcada para essa adaptação? Vai começar ou já se iniciou o processo? Como iremos julgar? Com um espírito crítico de tolerância, de minudência e bom senso, sem ortodoxia, ou apostando na estagnação? Se Kardec, voltado à ciência e experimentação, não fosse um progressista, certamente não teria avançado pelos caminhos que desbravou. Repito: como Kardec faria hoje?

Notas do ECK:

[1] Artigo originalmente publicado na edição impressa da “Revista Harmonia”, Ano XX, N. 148, de Janeiro de 2007. Texto ligeiramente adaptado.

[2] A obra em questão, publicada em 1890, vinte e um anos após a morte de Kardec, a partir de manuscritos encontrados em sua escrivaninha e caixas em seu escritório residencial devem ser vistas com cautela, em face tanto da inexistência dos originais, com a grafia de Kardec, para todos os textos, assim como, em face das descobertas de que, após a sua morte, aqueles que deviam defender seu legado de interpolações e adulterações, não o fizeram, comprometendo a lisura e a integridade tanto de suas duas últimas obras, “O Céu e o Inferno” e “A Gênese”, quanto das demais edições da “Revue Spirite”, a partir de maio de 1869. Para conhecer mais sobre tais agressões e crimes contra o legado kardeciano, acessar a seção “Dossiê Adulteração”, no Portal ECK (https://www.comkardec.net.br/category/dossie-adulteracao/).

[3] Muitos espíritas, desde a década de 1980, no século passado, se valeram desta expressão “planeta em transição” ou “transição planetária” para, de modo simplista, afirmarem que o momento atual seria mais decisivo do que todos os anteriores em termos de progressividade humano-social. Devemos entender, inclusive à luz de “O livro dos Espíritos”, que o progresso (uma das dez leis espirituais explicadas pelo Espiritismo – inclusive na terceira parte desta obra) é paulatino e incessante, de modo que a Terra SEMPRE esteve, está e estará em transição, desde o momento inaugural em que foi criada.

[4] O ECK considera o quantitativo de 32 (trinta e duas) obras escritas e publicadas em vida por Allan Kardec (https://www.comkardec.net.br/as-32-publicacoes-de-allan-kardec-arquivo/).

Imagem de Jan Mateboer por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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