Apreciações espíritas sobre a fome: A fome num país de farturas – as lições de Helder, Betinho, Boff, Lancellotti, Herculano, Chico… e quanto a nós?

Tempo de leitura: 26 minutos

Apreciações espíritas sobre a fome: A fome num país de farturas – as lições de Helder, Betinho, Boff, Lancellotti, Herculano, Chico… e quanto a nós?

Marcelo Henrique

 

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“Numa sociedade organizada segundo a lei do Cristo, ninguém deve morrer de fome”, 

Allan Kardec [1].

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Premissas Políticas

Assisto, estupefato, o “circo dos horrores” desta década. Mas, na verdade, podemos dizer que as “apresentações circenses” já vêm de anos antes, em temporadas que se sucedem – não nas telas, apesar de elas serem reproduzidas midiaticamente – mas na vida real, com personagens que não estão em paupérrimos países do continente africano nem nas periferias de grandes metrópoles, mundo afora. Estão aqui, ao nosso derredor.

O “circo” tem um picadeiro em que se alternam o apresentador, o mágico, o engolidor de espadas, a mulher barbada, os motociclistas e os malabaristas, enquanto o “respeitável público” segue na posição de expectador – embora, francamente, em muitos momentos, seja equivalente a torcedor de um grande clássico futebolístico, um “Fla-Flu”, um “Corinthians-e-Palmeiras”, um “Gre-Nal” ou um “Atlético-e-Cruzeiro”. Ah, não estou esquecendo das demais capitais brasileiras com seus embates no esporte bretão. Pode ser um “Figueirense-e-Avaí”, um “Sport-Santa”, ou um “ABC-e-América”, para dar alguns outros exemplos similares!

Os torcedores têm seus “times” – ainda que aqui estejamos falando não de meras siglas político-partidárias, desde a redemocratização (1979) e a volta da eleição presidencial por via direta (1989). Eles são, destacadamente, os espectros de direita e esquerda que se embatem nos planos local (municipal/estadual) quanto no nacional. E não se resumem aos cargos majoritários do Executivo, porquanto num país que foi talhado para o parlamentarismo (pela Constituição Cidadã de 1988), os remendos da democracia e do partidarismo “de ocasião” (leia-se fisiologismo) o transformaram em uma republiqueta latino-americana de quinta categoria (a “república das – e dos – bananas”). E em que é praticamente impossível governar, porque os fisiologismos imperam!

Estou sendo duro? Talvez… Mas a dureza de minhas palavras reflete uma democracia (ainda) muito frágil, que não consegue resolver seus hiatos e suas encruzilhadas a partir do bom e apropriado debate das ideias (e dos projetos para a nação, e não para meros guetos ou nichos “centralizantes”). Mesmo que haja, aqui ou ali, com expoentes como Itamar, Fernando Henrique, Luís Inácio e Dilma (não raro, todos de centro-esquerda, nenhum de esquerda efetiva), exercícios que esboçam “projetos nacionais” (em que o nacionalismo de verdade permite proteger o tritongo trabalho-produção-geração de renda), os “movimentos” da política partidária se concentram em tomar/manter/permanecer o(no) poder. Sob o ponto de vista da análise jurídico-ideológica, nenhum problema, posto que cada “bandeira” política deve se preocupar em angariar “brasa para sua sardinha”, como sanciona o adágio popular.

Fome de quê?

O mote do artigo é a fome. Mas há várias “fomes”. Todavia, é preciso falar da mais iminente e tormentosa delas: a de sobrevivência. A fome alimentar. Aquela que nos faz, enquanto mães e pais de família, levantar da cama todos os dias com a preocupação de buscar o “pão-de-cada-dia” para a manutenção de nossa prole. Condição básica e herança animal, que nos mantém vivos e motivados para todas as lutas da caminhada.

Há muitos, todavia, que não dispõem de tais condições. A “vida” não sorri igualmente para todos e é possível entender que uma antiga mensagem, de quase dois mil anos, expressamente nos recomendou fraternidade, tolerância, caridade e humildade: “tive fome e me deste de comer” (Mt; 25:35). Além, é claro, de outras necessidades, que a parábola inspiradora do Magrão cuidou de disciplinar, como orientações necessárias e humanísticas, aos “homens e mulheres de boa vontade”.

No intervalo da atração principal do “circo”, que é a rodada da vez nas negociações entre parlamento e executivo – muitas das vezes com a intermediação do juízo tribunalício – na vigência plena do formato tripartite mostesquieuano de poder e o seu decorrente sistema de freios e contrapesos, temos tempo para observar um figurante que se “assanha” no palco circense.

O figurante é a “moral espírita”, que também é parte da “moral cristã”. Ou, mais propriamente, a “moral dos espíritas”. Aquela que se apressa em atribuir juízo a fatos e situações e espelha a sua pouca visão espiritual embora ancorada em princípios do Espiritismo. Anacronicamente, dizem muitos dos adeptos deste espiritismo (com “e” minúsculo que se tornou religião no Brasil, mesmo que cada vez mais inexpressiva por não assumir sua feição filosófico-científica e por repetir jargões e padrões que cabem às demais facetas do Cristianismo à brasileira, sobretudo o neopentecostal e o católico, antes soberano). Curioso para saber qual é o “dogma” dos espíritas deste Século? Pois bem, vamos a ele…

O dogma da pseudoverdade espírita

Aos famintos da carne, os que carecem da misericórdia alheia, os que perambulam por todas as cercanias religiosas atrás de algum lenitivo, ou os que jazem nas “choupanas” ou que habitam nas ruas, o espírita-padrão escolhe o óbolo (não o da viúva) do descarte, quase sempre. O que tenho e não mais me serve. O que sobra na dispensa. O que é possível entregar, sem desfalcar a carteira…

Obviamente não sou nenhum hipócrita para desdenhar dos gestos caritativos, ainda que os montantes, os objetos ou os processos de doação possam ser questionáveis. Montantes porque não exigem, dos donatários, qualquer esforço “a mais”. Objetos, porquanto sejam praticamente os inservíveis (porque ninguém – ou quase – doa o casaco de três ou quatro centenas de reais, que está sendo usado pela segunda ou terceira vez, numa noite de muito frio, ao entrar ou sair do seu automóvel, na abordagem de um andarilho ou pedinte com roupas rotas. Processos porque, parafraseando aquele Magrão – que é assim como eu nomeio Jesus – a mão direita jamais pode sequer cogitar o que fez a esquerda (Mt; 6:3)… Entendedores entenderão – como diz a moçada jovial!

Quero – e posso – ir um pouco mais fundo. Quero falar do exame (espírita?) das causas, perpassando o Código Moral das Vidas Passadas (para parafrasear o Professor francês, que fez o escorço filosófico em relação ao futuro, prospectivamente, não na base da adivinhação, mas da cordial advertência sugestiva para o hoje que olha para o amanhã). Neste código – que aqui está em minúscula, justamente por sua precariedade e inutilidade – os “espiritinhas” (expressão que comumente uso para, à luz da sabedoria de Herculano Pires, definir aqueles que se “entusiasmam” por demais com as noções espíritas, a ponto de subvertê-las ao seu precário juízo de análise) já dão o veredito acerca da “causa” da pobreza (humano-social).

Abro aspas para tal infame veredito: “São Espíritos muito devedores”. Ou, “Eles escolheram a prova da pobreza que é mais difícil do que a da riqueza”. E, ainda: “Devem suportar as expiações, para avançarem na senda do progresso”. E, também, arrematando: “São instrumentos para que possamos progredir, ajudando-os”.

Estupefato, ouço e vejo, ainda que me “belisque” para ver se, de fato, acabei de ver e ouvir tantas sandices. É, Magrão, os “olhos de ver e ouvidos de ouvir” (Mt; 13:9 e 16) parecem cegos e surdos, sem entender patavina nem do que você nos legou, nem, depois, em complemento, o que Kardec exemplificou e ampliou – quando, talvez, assim disseram as Inteligências Invisíveis, estaríamos mais aptos a entender a essência da vida, da reencarnação, da vida em sociedade, da lei de progresso, do amor ao próximo, e tanto mais. Eu sei, tu o disseste: “Tenho ainda muito mais para vos dizer, mas vós ainda não podeis entender”, razão pela qual, “rogarei ao Pai, para que lhes envie o Paracleto, o Espírito Verdade”…

A fome é de quê?

A fome material, no Brasil de 2025 – no “continuum” das décadas anteriores, evidentemente, ampliando o recorte – é um cruel paradoxo. Afinal…

O Brasil figura como o maior produtor de proteína animal do mundo. É destacado exportador de “commodities” para o planeta inteiro. É francamente superavitário em grãos e alimentos. É um solo “onde se plantando tudo dá” (não é Pero Vaz?). Categoriza-se, no cenário internacional, pela produção de alimentos – e, também, de produtos industrializados como adaptações ou derivações dos insumos agrícolas e da pecuária – numa diversidade que não possui similares em nenhum país de qualquer dos continentes. Possui credenciais de premiação, valorização mercantil e categorização em índices, anuários e periódicos especializados de produtos de origem animal e vegetal.

Em contraponto…

Sua população, empobrecida (e daí? – diria o ex-gestor público nacional, já inelegível e prestes a ser preso pelo “conjunto de sua pérfida obra”, um concerto desafinado e à capela, capaz de ensurdecer qualquer “verdadeiro espírita”, ainda que um bom número dos frequentadores de centros espíritas se alinhe ao “ex-capitão” por afinidade ideológica!) segue o seu réquiem de dificuldades. Vale lembrar que, em três dos quatro anos do mandato do personagem, milhões de brasileiros seguiam se alimentando de soro de queijo, pele de frango e ossos bovinos, com o preço da carne e leite e derivados alcançando recordes históricos (Rivé; Henrique, 2022). 

Mas, “o agro é pop”, dizia a rica e bem produzida propaganda de Nárnia em rede nacional…

A fome é, logicamente, de alimentos. Mas também de dignidade, de solidariedade e de respeito!

O Paracleto explica a fome…

Os Espíritos Superiores foram sequencialmente questionados por Kardec para tratar dos temas “de humanidade”, isto é, aqueles pertencentes ao quadrante da vida físico-material, relativos à ambiência da encarnação. Mesmo quando circunstanciados ao “hoje”, as respostas e orientações – sejam as de autoria de Espíritos (desencarnados) seja as pontuais dissertações do Professor francês, muitas ampliativas em relação ao conhecimento proporcionado pela dicção contida nas páginas psicografadas – também continham elementos voltados aos outros dois quadrantes temporais da vida espiritual: o passado e o futuro.

Sim, a Doutrina dos Espíritos é atemporal, não somente ao conjunto que sobrevive ao tempo e aos progressos científicos e tecnológicos, mas, também e especialmente, em relação à essência que deriva da explicação espiritual (logicamente a coerente, e não a derivada de espasmos ou arroubos de pseudointeligência – como as pueris e desqualificadas afirmações que transcrevemos acima).

O que gera, então, a fome (material)? O egoísmo e o orgulho, as duas maiores chagas da condição humana. Deles derivam todos os males existenciais e espirituais, como figura em várias observações das Inteligências Invisíveis e do próprio Kardec. Egoísmo e orgulho que carecem de ser combatidos no seu âmago, que é não só o comportamento (exterior) dos homens, como a ideologia que o inspira – inclusive no espectro das preferências, adesões e escolhas políticas. E isto não significa que estejamos, de modo maniqueísta, dizendo que há “lobos e ovelhas” perfilados em lados opostos. Sem ingenuidade – nem mau-caratismo – dizemos que há lobos nos “dois” lados e podem (vamos frisar, podem!) existir ovelhas que estejam perfiladas nas duas posições equidistantes (embora acreditemos que o “ser” ovelha não lhes permitirá permanecer por muito tempo em um cercadinho que é “dirigido” por lobos, astutos e com comportamentos criminosos).

Seguindo nas explicações espirituais-espíritas, a pobreza é, sim, ao mesmo tempo, uma expiação e uma prova e ela possui a mesma “natureza” da riqueza, enquanto conjunto de oportunidades que são assumidas pelos Espíritos, em suas idas e vindas. Em outras palavras, é preciso conhecer todos os caminhos para poder ter como bagagem experiencial o modo de lidar com as agruras e as benesses, as tristezas e as alegrias, as limitações e os benefícios das experiências. E, notadamente, não é nem será apenas o olhar quantitativo material o elemento que poderá categorizar, umas e outras, enquanto oportunidades (benfazejas) para o caminho de progresso de cada Espírito.

De outra sorte, não há seres isolados – e os que imaginam que tal isolacionismo seja o confinamento em cavernas de liberdade ou palácios ou quartéis (conforme a preferência, claro) superprotegidos e confortáveis, devem ampliar a sua diagnose para entender o “além” das relações mais próximas e naturais pelos laços afetivos da existência. Ou seja, somos, todos, de fato, irmãos em Espírito. E, consequentemente, embora não possamos cuidar de todos, nem da maioria, nem de parte significativa, a presença dos mais necessitados proximamente, nas curvas do caminho, nas esquinas das cidades, ou quando nos batem à porta na “mendicância” (que, na verdade, é o sussurro desesperado de quem não antevê qualquer outra solução), é o “sinal fraterno” de que não estamos sós na caminhada e que precisamos estender as mãos – aquelas que transcendam ao mero gesto de entrega-descarte daquilo que nos sobra ou que não nos irá faltar…

Portanto, totalmente diverso daqueles “arroubos de explicações” que os “espiritinhas” dão para a pobreza, a fome, a indigência social e a ausência de justiça social neste Brasil!

E os governos?

Ah, sim, temos de falar de política – ainda que muitos dos que chegaram até este ponto do ensaio, por não terem “desistido” antes, em função de termos atacado os “ídolos de barro” e as “imagens cultuadas”, possam daqui por diante debandar. Se o fizeram, que pena! Sim, vamos falar da genuína política, à feição aristotélica.

Não vamos falar de partidos, de legendas, nem de expoentes políticos da atualidade. Vamos falar de bandeiras humanitárias. Vamos tratar de programas e projetos de ação. E vamos enaltecer, é claro, programas de transferência de renda (como o primeiro deles, instituído no primeiro governo eleito pós-impeachment, nesse país, de Fernando Henrique [1], distante das práticas governamentais assistencialistas dos governos anteriores, edificando o esboço de uma rede de proteção social para o combate à pobreza (em suas causas orgânicas) e por meio de transposições diretas de renda aos cidadãos.

Depois, em 2003, na continuidade deste paradigma, com Luís Inácio Lula da Silva, foi instituído o programa “Bolsa Família”, alcançando um novo patamar de transferência de renda, valendo-se, inclusive, de outra ferramenta básica que foi o Cadastro Único de Programas Sociais (criado em 2001), permitindo, assim, um adequado desenho e focalização das ações, a cobertura do público-alvo e o desenvolvimento de diversas estratégias tanto de coordenação quanto de articulação intersetorial (Ipea, 2017; Soares & Sátyro, 2009). Já em 2004, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, representou um avanço governamental importante para o monitoramento de demandas, o atendimento da população e a avaliação permanente das iniciativas.

Infelizmente, no governo Bolsonaro apesar da maciça propaganda direcionada ao título do programa “Auxílio Brasil”. que substituiu o “Bolsa Família”, para apagar a marca petista, a medida provocou “distorções que prejudicaram a promoção da equidade”, além de ser mais suscetível a fraudes, inclusive por permitir o “aumento artificial nos registros de famílias unipessoais, a partir de solicitações separadas feitas por pessoas de um mesmo núcleo familiar” (Pereira, 2023). 

A partir de 2023, no entanto, oportunas correções foram promovidas, emergencialmente por medida provisória depois convertida na Lei Federal n. 14.601 (de 19 de junho), fortalecendo o cadastro único e estabelecendo uma rede de cooperação entre o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), o Ministério Público Federal (MPF), o Tribunal de Contas da União (TCU), a Controladoria Geral da União (CGU) e os distintos órgãos de controle de Estados e Municípios, a fim de descentralizar a gestão, coibir fraudes e alcançar melhores resultados. E, ainda, como objetivo-satélite, a promoção do estímulo ao emprego e o registro em carteira de trabalho.

Vale ainda destacar que, em sendo sede da reunião do G20 no Brasil e estando o nosso país na presidência do grupo, foi proposta a Força-Tarefa para a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, cujo objetivo primordial é “reunir recursos e conhecimentos para a implementação de políticas públicas e tecnologias sociais comprovadamente eficazes na redução da fome e da pobreza no mundo”. As ações independem dos governos, sendo autônomas, mas têm nos Estados partícipes o apoio e a participação na deflagração de ações específicas. Os três pilares da Aliança, unem “uma cesta de políticas públicas, financiamento e assistência técnica/tecnologia”, por meio de uma análise complexa dos sistemas alimentares e uma avaliação crítica do atual sistema econômico capitalista neoliberal, cuja base financeira tradicional e permanente produz e mantém profundas desigualdades (Sangioratto, 2024).

Dados recentes

A pesquisa Vox Populi divulgada em junho de 2022 (com dados levantados entre novembro de 2021 e abril de 2022, compreendendo 12.745 domicílios de 577 municípios nos 26 estados e no Distrito Federal) apontou para o catastrófico número de 33,1 milhões de pessoas, então 15,5% da população brasileira) passando fome. O diagnóstico foi complementado com a informação de que 60% dos domicílios relataram algum tipo de dificuldade de alimentação e 58,7% dos habitantes do Brasil (125,5 milhões de habitantes) convive com insegurança alimentar em algum grau. Este é o levantamento mais recente sobre a questão no Brasil.

A gravidade destes números nos endereça para a identificação dos responsáveis (material e espiritualmente) pelo quadro cruel e violento imposto à sociedade brasileira. Vamos a eles (Henrique, 2022):

1) Os governos ou estruturas político-administrativas – a quem compete a edição de medidas preventivas e corretivas em relação aos problemas sociais existentes assim como políticas públicas relevantes de emprego e renda;

2) A classe empresarial, sobretudo as grandes corporações, não-necessariamente vinculadas ao agronegócio – pela indiferença em face do quadro em tela, e pela não idealização e execução de projetos socialmente necessários, visando a diminuição dos efeitos ou a promoção de algum benefício compensatório, sobretudo para os mais carentes;

3) As igrejas em geral, que são centros de arrecadação de valores em números significativos – que, apesar de quase todas terem programas sociais, não têm se mobilizado para ações permanentes e efetivas em prol da minimização das carências alimentares dos irmãos brasileiros, distante da mera caridade proselitista e no escopo de programas sociais de qualificação profissional, distribuição de renda e erradicação da pobreza pela via das oportunidades concretas; e,

4) O indivíduo em geral, sobretudo os que parecem “dar de ombros” em relação a esta problemática – estes, em geral, em padrões egoísticos, entendem que cada um deva trabalhar pelo “pão de cada dia”, distante dos sentimentos cristãos de solidariedade, fraternidade e caridade.

Portanto, a fome – e seus efeitos – não pode passar ao largo, desapercebida, dos homens de bem, ou, como quiserem, para representar uma bandeira maior, dos cristãos do nosso tempo. Não é possível nem aceitável, pois, ficarmos indiferentes ante a perspectiva do número de óbitos e do agravamento das condições de saúde físico-psicológica-espiritual de quase um sexto da população nacional, conforme os dados do levantamento aqui exposto.

É preciso, pois, uma imensa rede, com os personagens acima elencados, para a promoção de ações concretas e socialmente imprescindíveis para tirar o Brasil do “mapa da fome”.

Nossos arautos: Helder, Betinho, Boff, Lancelotti, Herculano e Chico 

Há que se buscar, em nossa conjuntura brasileira, alguns personagens-ícones que nos sinalizam com ideias e ações. As primeiras nos inspiram as segundas, dentro, é claro, de nossas condições existenciais, possibilidades e engajamentos.

Helder Câmara.

É célebre a frase de Helder – dita em 1964, no triste alvorecer da ditadura brasileira [2] – que reverbera até hoje (tendo sido citada pelo falecido Papa Francisco [3]): “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista”. Helder Pessoa Câmara (1909-1999), sacerdote da Ordem Franciscana Secular, além de atuar (1964-1985) na Arquidiocese de Olinda e Recife, em inúmeras ações sociais para minorar os efeitos da pobreza e da indigência social, é reconhecido como um dos sacerdotes brasileiros claramente posicionado contra o regime militar, tendo denunciado no período diversos casos de violação de direitos humanos [4].

Câmara é celebrado por sua atuação que pregava uma igreja simples, totalmente voltada para os pobres, assim como pela defesa incondicional das atitudes não-violentas em todas os contextos e interações humanas. Sua atuação e seu legado são tão importantes, tanto para o combate à fome quanto pela defesa dos direitos humanos no Brasil, que o Senado Federal instituiu, desde 2010, a Comenda de Direitos Humanos Dom Hélder Câmara, que, anualmente, é entregue pelo órgão a personalidades que tenham oferecido contribuição relevante à causa (Senado Federal, 2025).

Betinho.

Betinho, ou Herbert José de Souza (1935-1997), sociólogo, celebremente imortalizado na canção ““O bêbado e a equilibrista”, de Aldir Blanc e João Bosco, como “o irmão do Henfil” (este último, reconhecido cartunista brasileiro) foi um icônico personagem no combate à fome, às desigualdades e discriminações, desde sua formação universitária (final da década de 1950 e início da de 1960), na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sendo um dos fundadores da Ação Popular (AP), engajando-se nas reformas de base do Governo João Goulart. Resistiu ao Golpe Militar (1964) e se exilou, em 1971, no Chile, no Canadá e no México.

Em 1980, fundou, com Carlos Afonso e Marcos Arruda, o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) [5], entidade umbilicalmente ligada à defesa da (re)democratização do Brasil, principalmente na forma de lutas pela emergência da cidadania e da diversificação social brasileira. A partir deste ano, também, foi um dos articuladores da Campanha Nacional pela Reforma Agrária. Sua maior bandeira em relação ao tema deste ensaio foi a idealização da “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida”, que ficou conhecida em nosso país como a “campanha contra a fome”, que ele coordenou, a partir de 1990 [6].

O bordão imortalizado por Betinho e pela campanha, “quem tem fome tem pressa”, que foi entoado no “Natal sem Fome” (1993), resultou na arrecadação de 580 toneladas de alimentos, contribuindo, ano após ano, para minorar as agruras dos mais necessitados no tempo das “festas natalinas”. Iniciativas como essa, aliadas aos programas governamentais foram responsáveis por retirar nosso país do “mapa da fome”, em 2014, ainda que ele tivesse retornado em 2020, com a suspensão, pela gestão Bolsonaro [7], da maioria das ações governamentais então instituídas.

Boff

A trajetória de Leonardo Boff (1938), nascido Genézio Darci Boff, teólogo, filósofo e escritor, notório expoente da Teologia da Libertação, no Brasil, é conhecido internacionalmente por sua defesa dos direitos dos pobres e excluídos. É um ex-sacerdote (Ordem dos Frades Menores – franciscanos) que foi silenciado pelo Vaticano (condenado por um ano ao “silêncio obsequioso”, em 1985, ocasião em que foi alijado, além do sacerdócio, da cátedra e das funções editoriais na Igreja Católica [8].

Tem se dedicado a décadas às abordagens sobre a fome e, mais particularmente, também a questões ecológicas (Ética, Ecologia e Espiritualidade). Boff preconiza o “comer e beber juntos”, de conteúdo material mas com dimensão anímica, sendo “mais que um direito e um dever de todos os seres humanos”, isto é, “um imperativo moral que não admitiria exceções nem exclusões”. A partir disso, infere que fome e desnutrição sejam “crimes de lesa humanidade e um escândalo social”, já que a humanidade dispõe de “meios e recursos técnicos para alimentar a todos os habitantes do planeta”. O filósofo, portanto, defende a agricultura orgânica, sendo um dos destacados críticos em relação aos transgênicos, manifestando permanente preocupação com a crescente escassez de recursos hídricos (Boff, 2006).

Neste sentido, é prudente a assertiva boffiana, no Jornal GGN: “nos últimos anos nos temos confrontado com os limites da Terra. Um planeta limitado não tolera um consumismo ilimitado. Já agora necessitamos de mais de uma Terra para atender o consumo de 8 bilhões de pessoas e o consumismo de fausto e de luxo das classes opulentas” (Boff, 2023).

Um recorte de suas ideias, importante para este debate é: “Temos muitas fomes. Algumas são saciáveis. E, as mais profundas, são insaciáveis. A existência humana só ganha sentido quando ela procura espicular as duas fomes: a fome de pão, de convivência, de cuidado com a natureza; mas também fome de infinito, solidariedade, transcendência” (Carla, 2018).

Lancellotti

Julio Renato Lancellotti (1948), pedagogo e sacerdote brasileiros é vigário episcopal para a Pastoral do Povo da Rua, junto à Arquidiocese de São Paulo (SP). Atua principalmente “junto a menores infratores, detentos em liberdade assistida, pacientes com HIV/Aids e populações de baixa renda e em situação de rua. Acredita na pessoa humana acima de tudo, “como imagem e semelhança de Deus” e considera que todos os cidadãos devem ter seus direitos respeitados” (Wikipedia, 2025). Julio é um combatente pacífico da aporofobia, num “exército” ao qual nos afiliamos, nas trincheiras do cotidiano atual (Rivé; Henrique, 2022).

Considerado por Betto (2025) como um “exemplo raro de sacerdote”, ele “coloca em risco sua vida para atender os mais excluídos, aqueles que são vistos nas ruas como “leprosos”, que cheiram mal e devem ser evitados e repudiados. Caminha nos passos de Jesus”. Porque sua atuação, há muitos anos, “não teme defender o povo da rua dos abusos policiais, acolhê-lo em sua igreja, denunciar as obras públicas que visam a impedir que se possa buscar abrigo sob viadutos ou em parques”.

Lancellotti arregaça as mangas e faz, diante de uma crise humanitária sem precedentes, em nosso país, mesmo que o atual governo tenha retomado importantes políticas sociais. Ele segue como a principal referência, tanto para a capital paulista como para todo o país, em relação aos “milhares de desempregados e desalentados, que dependem de doações de alimentos, utensílios domésticos e roupas de inverno, por exemplo”. Como ele mesmo diz, além da luta pela solidariedade e no combate às desigualdades, há a atuação premente para saciar a fome: “Com uma mão a gente dá o pão e com a outra a gente luta” (Brasil de Fato, 2021) [9]

Herculano

José Herculano Pires (1914-1979), filósofo e professor, sempre esteve antenado com as questões político-sociais e sua pena afiada nos legou interessantes análises que versam o tema em estudo. Herculano foi um notório adepto da Filosofia Social Espírita, aproveitando as orientações espirituais para a promoção de ações na sociedade, discutindo temas político-sociais e propondo alterações importantes. Como agente político, foi secretário do Prefeito de São Paulo, Jânio Quadros (1953-1954) e chegou a assessorá-lo no início de seu mandato presidencial, em 1961.

No início dos anos 1970, Herculano manteve um programa radiofônico na Rádio Mulher, por três anos. No programa 124, assim dissertou: “se os homens não procurarem desenvolver a sua produção de alimentos e a sua distribuição de alimentos de maneira adequada poderá haver fome em várias regiões do mundo”, salientando que este problema no planeta sempre existiu, mas poderia ir “desaparecendo na proporção em que os homens encontram uma técnica suficiente de distribuição alimentar” (Pires, 2025:s.p.).

O filósofo paulista também criticava o materialismo exacerbado e os problemas derivados das chagas morais humanas, criticando o atual estágio civilizatório: “Nosso refinamento é exterior e superficial. Por baixo das camadas de verniz da civilização atual carregamos os monstros que puseram suas garras de fora na última Conflagração Mundial, no genocídio atômico de Nagasaki e Hiroshima, nas escaladas americanas sobre o Vietnã. A prova disso está aí, flagrante e horrenda, nas violências tecnológicas de nosso século. E isso porque imolamos o espírito à matéria. Esquecemos a nossa origem, essência e destino divinos para nos proclamarmos senhores de um mundo de fome e miséria” (Pires, 1988:78).

E, debruçando-se sobre as questões econômicas, apresentou sugestões (Pires, 1982:44), para a Economia que, segundo ele, deveria “tornar-se universal, rompendo os diques e as barreiras de um mundo pulverizado, para lhe dar a unidade necessária e a flexibilidade possível para o atendimento dos povos e de suas camadas diversificadas, afastando do planeta os privilégios e os desperdícios, a penúria e a fome”. Para ele, a civilização humana só poderia se tornar e ser considerada perfeita quando ninguém morresse de fome.

E, no âmbito da participação efetiva e solidária de todos, nesta mesma obra, concluiu: “A mecânica da caridade pode ser desencadeada, no homem do mundo, por situações aflitivas; de saúde ou de problemas familiais ou financeiros, levando-o a dar, não raro por vaidade, a primeira moeda a um mendigo. Essa doação insignificante abre uma pequena brecha no egoísmo. A seguir virão outras doações mais generosas, até que a fortaleza do ego se abale e o ser orgulhoso possa perceber a sua própria imagem refletida no espelho doloroso de um rosto de pedinte esfomeado. O Espiritismo nos ensina a dar, além da moeda, o nosso amor à toda a Humanidade, sem discriminações raciais, religiosas, políticas e de espécie alguma” (Pires, 1982:110-111).

Herculano falava de um outro socialismo, o socialismo espiritual – que conceituamos, em um outro trabalho recente nosso (Henrique, 2025), como aquele que possa “contribuir para que a vida, na matéria, possa ser o quão mais espiritualizada possível”. Na visão de Pires (2002:27), “os homens que amealharam fortuna da Terra amealharam egoísmo, injustiça e impiedade”, mas os chamados “bens da Natureza pertencem a todos, e os que transformam esses bens para produzir outros não podiam esquecer o dever da fraternidade. Como pode regozijar-se na opulência o homem que vê seus irmãos morrendo de fome, doença e miséria nas sarjetas da cidade ou nos paióis do campo? Derrubar as migalhas da mesa para os cachorrinhos e os gatos não é amor nem Justiça” [10].

Chico

Considerado a humildade em pessoa, o mineiro Francisco Cândido Xavier, o Chico Xavier (1910-2002), foi o maior médium brasileiro, responsável pela recepção de informações ditadas por Inteligências Invisíveis, em mais de cinco centenas de livros publicados, cujos direitos autorais foram totalmente cedidos a instituições assistenciais e filantrópicas. Chico foi retratado em livros biográficos e em recentes filmografias.

De origem humilde e trajetória simples, como servidor público – escriturário do Ministério da Agricultura – notabilizou-se por sua fala mansa e ponderada, mas sem deixar de abordar os graves e crônicos problemas da sociedade brasileira e da Humanidade, inclusive durante os “anos de chumbo” no Brasil (1964-1985).

Ficaram marcantes na televisão brasileira as suas duas participações no programa “Pinga Fogo” na TV Tupi, em que foi questionado acerca de muitas temáticas. No segundo, assim se pronunciou acerca da fome: “O Espiritismo nos ensina que se existe fome não é por culpa da Terra, assim como o rio não tem culpa quando passamos por cima dele uma ponte cometendo um delito contra a higiene. As leis são magnânimas, mas a vacina contra a ignorância é a instrução e a vacina contra a penúria é o trabalho. Ao invés de pedir melhoria de rendas, vamos pensar assim conquanto precisemos de dinheiro, todos necessitamos do dinheiro como o sangue de nossas realizações materiais e seiva da nossa civilização. Nós todos precisamos do dinheiro, seja ele apresentado de que forma for, em qualquer regime, porque o dinheiro é um documento daqueles que nos governam e que nos credenciam para o serviço aquisitivo onde estejamos. Conquanto precisemos todos do dinheiro, vamos pensar, por exemplo, em trabalhar todos e em organizar vamos dizer, a questão do trabalho com o aproveitamento das nossas energias integrais. Então, cremos que o problema seria quase que imediatamente resolvido” (Chico Xavier, 2009:43). 

Ainda sobre as participações de Xavier no “Pinga Fogo”, é destacada a abordagem do médium sobre o tema deste ensaio: “Num congresso de neurologia, realizado há muito pouco tempo, se deu especial desta que ao problema da fome. É verdade que o problema da fome é removível com a redistribuição do trabalho, com a administração criteriosa do trabalho para a criatura humana em todas as idades de sua posição válida no plano físico” (Capemi, 1972).

Recentemente, a mídia resgatou um pronunciamento do médium, em entrevista, justamente para tratar da resolução do problema famélico, com uma profunda crítica social: “quem pode e não ajuda o povo é como se cometesse um crime contra toda a sociedade, ou seja, se o Estado não cumpre o seu dever, revela-se um processo antagônico. Nesse viés, a inexistência de políticas públicas eficientes que visem erradicar essa negligência, a exemplo das desigualdades economias e sociais, que fazem diversas pessoas não terem alimentos, sendo assim, esses obstáculos podem colaborar para a não efetivação desse direito social” (Descomplica, 2024).

O conjunto das manifestações das seis personalidades brasileiras, por nós escolhidas, nos recortes apresentados, nos endereçam a um importante conjunto de ideias que devem ser inspiradoras para cada um, de per si, tal como o beija-flor retratado em uma fábula, “O incêndio na floresta”, de origem desconhecida, mas relatada pela professora Wangari Maathai, ativista ambiental e política do Quênia, escritora ganhadora do Prêmio Nobel. (Josette, 2022). A “moral da história”, como se conhece, é a de que cada um pode fazer o melhor que puder!  

E quanto a nós!?

Ah, mas somos tão pequeninos – tal qual o beija-flor da fábula (Josette, 2022)… O que podemos fazer? Este pode ser o questionamento íntimo de muitos. Todavia, mesmo que nos reconheçamos em nossas realidades pessoais, não sendo, talvez, nem pessoas influentes, nem estando à frente de grandes instituições, assim como não dispondo de muitos recursos econômicos, há onde e como agir.

Encarar a fome é estar plenamente sensibilizado diante dos famintos, acolhendo-os. E, para tal, como homens de bem, como cristãos e como espíritas, como já destacamos, antes, em outro ensaio (Rivé; Henrique, 2022), é preciso ampliar o olhar para entender as distintas “situações e contextos, individuais e coletivos, de (produção de) conhecimento, ou seja, de vida, de valores, de inclusão, de compromisso, de humanização, enfim, de paz”, inclusive para nos afastarmos do discurso de muitos, de uma canhestra noção de “meritocracia”, para justificar a riqueza de uns e a pobreza de muitos”!

Principiemos, então, pelas pequenas atitudes, no engajamento a ações locais que tenham como objetivo minorar as necessidades dos “mais próximos”. O Magrão já teria dito, incentivando o “pouco” que nos seja possível, quando disse que “quando fazeis a um desses pequeninos, é a mim que o fazeis” (Mt; 25:35-45). Este compromisso pessoal atende aos apelos de espiritualização do ser em sua marcha progressiva, na preocupação com a atenção fraterna com os semelhantes.

E, acreditamos nós, ela possa sensibilizar aqueles que nos cercam – sem qualquer necessidade de, nestes tempos de cliques e engajamentos – apelar para as vaidades pessoais, na exposição de nossas atitudes pessoais. Não se trata disso! Que a força do exemplo, enfim, nos enderece à participação em movimentos e à realização de ações que possam, efetivamente, diminuir ao máximo – no afã de erradicar, como utopia possível – a fome em nosso país (e no mundo).

Será que podemos?

***

 

Notas do Autor:

[1] Resposta ao item 930, de “O livro dos Espíritos”. 

[1] O Programa “Comunidade Solidária” foi instituído pelo governo em 1995, calcado na “ideia do empreendedorismo social, com a participação de variados segmentos da sociedade, empresariais e do terceiro setor, através de sua atuação se concatenou e priorizou um conjunto de 20 programas, executados por nove ministérios (Agricultura, Educação, Esportes, Fazenda, Justiça, Planejamento e Orçamento, Previdência e Assistência Social, Saúde e Trabalho). A sinergia das ações governamentais, o foco de trabalho e o apoio da sociedade permitiram modificar o conteúdo e o caráter das políticas sociais” (Tucano, 2013:s.p.).

[2] Uma das referências específicas à expressão helderiana (Memórias da Ditadura, 2025), ainda complementa a condição imposta pelo regime militar ao arcebispo pernambucano: “Dias depois do golpe, Dom Hélder divulgou um manifesto apoiando a ação católica operária no Recife. O novo governo militar o acusou de demagogo e comunista, e ele foi proibido de se manifestar publicamente. Com a implantação do Ato Institucional Nº 5 (AI-5), em 1968, por incomodar muito os militares, passou a ser considerado pelos agentes do governo como um “morto-vivo”. Os meios de comunicação não podiam falar sobre ele, nem publicar nada que mencionasse seu nome. O arcebispo estava proibido até de frequentar as universidades do país”.

[3] O Papa Francisco estava dissertando sobre o amor cristão aos pobres, quando citou “aquele santo bispo brasileiro”, repetindo a frase em tela. 

[4] Dom Helder foi indicado, por quatro anos sucessivos, de 1970 a 1973, ao Prêmio Nobel da Paz. Lima (2019) destaca todos os esforços da cúpula militar e da diplomacia brasileira para impedir a premiação, logrando, infelizmente, êxito. Tudo está documentado e foi registrado pela “Comissão Estadual da Memória e da Verdade Dom Hélder Câmara”, que teve acesso a documentos do Itamaraty. Reportagem da Folha também destacou esta mobilização (Couto, 1997). Mais um desserviço ao Brasil, cometido pelo regime de exceção, impedindo que o prêmio em dinheiro pudesse alcançar projetos sociais capitaneados pelo arcebispo, naquela necessitada região, no período. Ainda na expectativa de que pudesse ser laureado, assim se expressou Câmara: “Tenho que admitir a hipótese da loteria sair para o Recife. Na hipótese do faz de conta, o Nobel só valeria na medida em que ajudasse a marcha das ideias, que não são apenas minhas, mas nossas!”.

[5] O Ibase é um legítimo ator, autônomo e público, na sociedade civil, “uma organização de cidadania ativa, que produz e formula conhecimentos, análises, questões e propostas como argumentos para a ação democrática transformadora”, tendo os espaços públicos como “campo prioritário de ação”, instituindo fóruns coletivos e movimentos políticos e culturais, nas áreas dos direitos humanos, da cidadania, da democracia e da sustentabilidade socioambiental (Ibase, 2025b).

[6] Toda a trajetória do movimento, desde 1993, “formando uma imensa rede de mobilização de alcance nacional para ajudar 32 milhões de brasileiros que, segundo dados do Ipea, estavam abaixo da linha da pobreza”, é descrita com detalhes em Ação da Cidadania (2025).

[7] Matéria da DW Brasil destaca, conforme pesquisa de 2022: “33,1 milhões de pessoas no Brasil não têm o que comer, fazendo o país regredir a um patamar de insegurança alimentar equivalente ao da década de 1990”, assim como “58,7% da população brasileira convive com a insegurança alimentar em algum grau – leve, moderado ou grave (fome). Atualmente, apenas quatro em cada 10 domicílios brasileiros conseguem manter acesso pleno à alimentação, ou seja, estão em condição de segurança alimentar”, em razão de que “as medidas tomadas pelo governo para combater a fome hoje em dia são isoladas e insuficientes, diante de um cenário de alta da inflação, do desemprego e da queda de renda da população” (DW, 2022). 

[8] Conforme a Wikipedia (2025), seu livro “Igreja, Carisma e Poder”, onde expressa “conceitos teológicos sobre a doutrina Católica com respeito à hierarquia da Igreja” foram analisados pela Congregação para a Doutrina da Fé, que era dirigida por Joseph Ratzinger (depois Papa Bento XVI). No documento, Ratzinger concluiu: “as opções aqui analisadas de Frei Leonardo Boff são de tal natureza que põem em perigo a sã doutrina da fé, que esta mesma Congregação tem o dever de promover e tutelar”. Seguiu sendo observado de perto por seus superiores até 1992, quando se desligou da Ordem Franciscana e solicitou a dispensa do sacerdócio (mas isto não lhe foi concedido). Mesmo assim, afastou-se da função clerical, mas permanecendo na teologia e “dentro da Igreja”, como ele afirma.

[9] É supreendentemente irracional e profundamente lamentável que as ações do Padre Júlio sejam combatidas, inclusive por parlamentares, na cidade de São Paulo, como a iniciativa legislativa (2024) de instituir norma que prevê multa e limita a doação de comida à população de rua (Machado, 2024; Vilardi, 2024), em visível e deplorável atitude de aporofobia.

[10] Neste livro, denominado “O Reino”, que fala não do reino espiritual, transcendente, etéreo, espiritual, do futuro, que o Magrão seguidamente designava de “Reino de Deus”, mas do reino possível na Terra, pela construção possível derivada da ação dos homens de bem, Herculano ainda aponta: “Que direito tem um homem de cercar uma árvore ou mais árvores, de torna-las suas escravas particulares, de arrebatar-lhes sistematicamente os frutos para transformá-los em riqueza pessoal? Os frutos devem saciar a fome dos famintos, alimentar as crianças e fortalecê-las para o futuro”. Ou “Quando colho os frutos de uma árvore e os converto em moedas, cobrando ao faminto o preço exorbitante que deve me garantir o lucro, devolvo a pureza da polpa e o mistério das sementes à rigidez do metal. Mas quando tomo esses frutos e sacio com eles a fome das crianças pobres, transformo a polpa e as sementes em luz para o Reino de Deus” (Pires, 2002:35-36 e 39-40).

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Fontes:

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Edição: Julho de 2025

Editorial: A atualidade de Kardec e o “Rock’n roll”, por Manoel Fernandes Neto e Nelson Santos

A interpretação lúdica do Espiritismo, por Marco Milani

Os espíritas exaltados na atualidade, por Ada P. Martins Correia 

Reeducação alimentar, por Cláudio Bueno da Silva

Livre Pensamento ou Controle: atualidade das advertências de Allan Kardec, por João G. Afonso Filho

Cristaleira do Afeto: quando o brinquedo recria ausências, por Wilson Custódio Filho

Após a Sede Líquida, por Maria Cristina Rivé

Do Simples e Ignorante à Consciência Plena: um Diálogo Entre o Pensamento Espírita e as Ciências Evolutivas

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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