Marco Milani
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Ao transformar o Espiritismo em uma sucessão de histórias de efeito emocional, com descrições fantásticas de um mundo espiritual moldado à imagem dos desejos e expectativas humanas, o Movimento Espírita abre mão de sua missão educativa e libertadora de consciências. Temas e conceitos que jamais passaram pelo crivo da universalidade tornaram-se, para muitos, dogmas modernos de um Espiritismo romanceado e desconectado de suas raízes científicas e filosóficas.
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Um fenômeno preocupante vem se consolidando no Movimento Espírita Brasileiro nas últimas décadas: a transformação do Espiritismo em uma doutrina de consumo literário emocional, guiada por narrativas fantasiosas, sem rigor doutrinário e, em muitos casos, completamente descolada dos critérios de validação estabelecidos por Allan Kardec. Trata-se daquilo que podemos chamar de uma “interpretação lúdica do Espiritismo”, em que o conteúdo doutrinário é tratado como um conjunto de histórias para entretenimento e não como um corpo de conhecimento filosófico, científico e moral.
Essa tendência se reflete na aceitação quase cega de informações contidas em romances mediúnicos e obras de caráter claramente ficcional, cujos conteúdos, apesar de frequentemente bem-intencionados, carecem de análise crítica, de fundamentação lógica e, principalmente, do aval metodológico da universalidade do ensino dos Espíritos, princípio que Kardec definiu como pedra angular da segurança doutrinária. Ignora-se que o Espiritismo não é o que um ou outro Espírito ou médium afirma isoladamente, mas sim o resultado de um processo coletivo, controlado, racional e convergente de ensino espiritual.
Infelizmente, muitos adeptos aceitam como verdades doutrinárias conceitos que surgiram em obras psicografadas de grande apelo comercial, sem qualquer preocupação em confrontá-los com os fundamentos estabelecidos na Codificação. Cria-se, assim, um cenário em que argumentos de autoridade, baseados no prestígio do médium ou na popularidade do Espírito comunicante, substituem o critério da fé raciocinada e o estudo comparativo e crítico. Essa postura, além de perigosa, fragiliza o movimento espírita, tornando-o vulnerável a mistificações, sincretismos e desvios conceituais.
O próprio Kardec, em diversas passagens de suas obras e especialmente na introdução de “O evangelho segundo o Espiritismo”, advertiu contra o perigo de se aceitar ensinamentos particulares como expressão da doutrina. Ele reforça que os Espíritos Superiores, por serem coerentes e esclarecidos, não se contradizem nas questões fundamentais, e que o controle universal do ensino dos Espíritos é a garantia contra os erros individuais. O Espírito Erasto, por sua vez, também alertou sobre o risco de que uma única teoria falsa, aceita como verdade, poderia ser a base para a construção de um sistema inteiro de ideias equivocadas.
Ao transformar o Espiritismo em uma sucessão de histórias de efeito emocional, com descrições fantásticas de um mundo espiritual moldado à imagem dos desejos e expectativas humanas, o Movimento Espírita abre mão de sua missão educativa e libertadora de consciências. Temas como colônias espirituais estruturadas à semelhança de cidades terrenas, Espíritos que mantêm funções fisiológicas humanas, processos de gestação espiritual e tantos outros conceitos que jamais passaram pelo crivo da universalidade tornaram-se, para muitos, dogmas modernos de um Espiritismo romanceado e desconectado de suas raízes científicas e filosóficas.
O resultado desse processo é o crescimento de um público espírita cada vez mais apegado ao emocionalismo, ao apelo místico e ao consumo acrítico de narrativas, em detrimento do estudo sistemático das obras fundamentais e da formação de um pensamento doutrinário sólido. A fé raciocinada, princípio fundamental da Doutrina Espírita, vai sendo substituída por uma fé literária, baseada na emoção e na autoridade de médiuns considerados populares.
A superação desse cenário só será possível com a valorização do estudo sério, da pesquisa comparada e da revalorização da metodologia kardequiana como bússola segura. É preciso resgatar o verdadeiro sentido do Espiritismo: uma doutrina de conhecimento racional, de investigação moral e científica, cujo objetivo maior é a emancipação intelectual e espiritual do ser humano, e não a criação de mitologias modernas para entretenimento lúdico.
Respeitar o legado de Kardec significa, antes de tudo, ter o compromisso com a verdade, com a razão e com a responsabilidade doutrinária. Apenas assim o Espiritismo continuará sendo o que sempre foi: um farol de esclarecimento, e não uma coleção de histórias agradáveis, mas perigosamente ilusórias.
Imagem de Roderick Qiu por Pixabay
Edição: Julho de 2025
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