Repensando o Sincretismo: Uma Resposta Crítica ao Discurso sobre Iemanjá, por Nathalia Koch de Matos

Tempo de leitura: 8 minutos

Nathalia Koch de Matos

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A circularidade cultural, evidenciada por exemplos como a música de Chiquinha Gonzaga e as representações variadas de divindades como Shiva e Buda, mostra que o sincretismo é um fenômeno multifacetado, que envolve tanto a imposição quanto a resistência e a reinvenção.

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O debate sobre a ressignificação de divindades no Brasil é complexo e exige uma análise que vá além de explicações unilaterais. Recentemente, o artigo “Iemanjá, a divindade africana que ganhou feição branca no Brasil”, escrito por Edison Veiga e publicado pela BBC [1], abordou o embranquecimento da imagem de Iemanjá sob a ótica da dominação cultural e do racismo, apresentando o sincretismo como um fenômeno essencialmente violento e imposto. No entanto, ao adotar essa perspectiva, o artigo ignora nuances fundamentais da dinâmica cultural e histórica envolvida nesse processo.

A seguir, apresentarei uma antítese detalhada, analisando criticamente os principais pontos do artigo e demonstrando como ele pode distorcer a forma como diferentes grupos compreendem a realidade. Meu objetivo não é negar a existência de processos de apagamento cultural, mas sim questionar a visão unilateral adotada pelo texto e evidenciar como o sincretismo é um fenômeno mais complexo do que simplesmente um ato de dominação.

  1. Sincretismo: Apenas um Fenômeno de Imposição?

O artigo sugere que o sincretismo é “sempre um fenômeno de dominação”. Essa afirmação, além de categórica, desconsidera que processos de fusão cultural podem ocorrer não apenas por imposição, mas também como forma de resistência ou até revolução simbólica.

Um exemplo interessante está na música de Chiquinha Gonzaga, que, ao incorporar a viola nas partituras clássicas do piano para criar uma música popular erudita, realizou um tipo de sincretismo que não foi fruto de dominação, mas sim uma resposta à imposição cultural aristocrática. Esse caso evidencia que o sincretismo não pode ser reduzido a um processo unilateral onde o mais forte impõe sua cultura ao mais fraco; ao contrário, ele pode ser um mecanismo ativo de apropriação e ressignificação.

Além disso, a própria história das religiões de matriz africana no Brasil mostra que seus adeptos, longe de serem passivos, desenvolveram estratégias para preservar suas tradições, muitas vezes ressignificando símbolos sem necessariamente perder suas raízes. Essa dinâmica de trocas culturais não é algo exclusivo do Brasil e nem pode ser reduzida à ideia de apagamento de uma cultura por outra. Como destaca Burke (2003, p. 32), há uma circularidade cultural que permite que influências retornem transformadas para seus pontos de origem:

“Alguns músicos do Congo se inspiraram em colegas de Cuba, e alguns músicos de Lagos em colegas do Brasil. Em outras palavras, a África imita a África por intermédio da América, perfazendo um trajeto circular que, no entanto, não termina no mesmo local onde começou, já que cada imitação é também uma adaptação.”

Essa ideia de circularidade cultural desmonta a noção de que o sincretismo é sempre um processo de imposição unilateral. Se fosse apenas um mecanismo de dominação, as influências nunca retornariam às suas culturas de origem modificadas e ressignificadas. O que ocorre, na realidade, é um movimento de ida e volta, no qual cada cultura não apenas recebe influências externas, mas as transforma ativamente.

  1. A Imagem de Iemanjá: Uma Apropriação ou um Fenômeno Mais Antigo?

Um dos equívocos do artigo está na suposição de que a representação de Iemanjá como uma mulher branca surgiu apenas na década de 1950, ignorando registros literários anteriores que já apontavam para essa iconografia.

O romance Mar Morto (1936), de Jorge Amado, já descreve Iemanjá como uma figura loira. É importante destacar que Amado não era um observador distante da cultura afro-brasileira; pelo contrário, ele era respeitado dentro do candomblé e retratava, em sua obra, elementos sociais e religiosos que já circulavam no imaginário popular. Isso indica que a ideia de uma Iemanjá de cabelos cor do sol não foi criada artificialmente por um grupo específico na década de 1950, mas já existia na cultura popular antes desse período.

Se a tese do artigo fosse verdadeira, como explicar que um escritor tão próximo da cultura afro-brasileira já registrava essa representação na década de 1930? Isso sugere que, mais do que uma apropriação tardia e imposta, o fenômeno pode ter raízes mais profundas na própria dinâmica cultural do Brasil.

Além disso, o artigo atribui à Umbanda o papel de agente principal no processo de “embranquecimento” de Iemanjá, mencionando a médium Dalla Paes Leme e o famoso quadro de Iemanjá, pintado a partir de uma visão que ela teria tido da divindade. Embora o próprio artigo reconheça que o sincretismo com Nossa Senhora, atribuindo à Iemanjá traços europeus, já era registrado desde o século XIX, ele enfatiza que foi apenas na década de 1950, devido à descrição feita pela médium umbandista, que teria ocorrido o apagamento da representação de Iemanjá como negra.

No entanto, essa relação causal direta é, no mínimo, questionável. Primeiro, a Umbanda, por sua própria natureza sincrética, não pode ser vista apenas como um espaço de apagamento, mas também de fusão e ressignificação de símbolos religiosos. Segundo, a pintura retrata a entidade com características indígenas, vestida de branco, e foi originalmente feita em tons de preto e branco. Portanto, a imagem amplamente difundida de “uma mulher branca de cabelos longos com sua túnica azul” não pode ser atribuída exclusivamente a esse quadro, o que enfraquece a argumentação do artigo.

Essa complexidade pode ser observada em entrevista exclusiva concedida por Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial, ao Congresso em Foco [2]. Na reportagem, a descrição do ambiente revela um detalhe simbólico:

“No entorno da mesa de trabalho da ministra Anielle Franco, objetos de arte de origem africana dividem espaço com uma santa católica.”

Esse fato evidencia um ponto crucial: mesmo entre aqueles que defendem a valorização das religiões de matriz africana e criticam a influência cristã na cultura brasileira, a presença de uma figura cristã no gabinete da ministra demonstra que as dinâmicas simbólicas no Brasil são mais complexas do que uma simples imposição colonial. Essa sobreposição de referências religiosas também pode ser observada na forma como a iconografia de Iemanjá foi ressignificada ao longo do tempo.

Contudo, embora o artigo da BBC tenha distorcido o fenômeno, ele não está completamente equivocado.

Em 2023, a estátua de Iemanjá, localizada em Praia Grande, no litoral de São Paulo [3], passou por uma revitalização significativa. Antes pintada de azul, o monumento foi inteiramente repintado de branco durante as obras. Essa mudança gerou forte reação de grupos de matrizes africanas, que protestaram, exigindo o retorno da cor original. No local, um dos manifestantes destacou: “É um ato religioso, para que eles nos escutem e voltem à cor original. Iemanjá é uma deusa negra, de matriz africana, e todos nós, munícipes de Praia Grande, estamos acostumados a conviver com Iemanjá da cor azul.” A alteração, portanto, não gerou insatisfação apenas entre representantes dessas religiões, mas também entre a população em geral.

Em resposta à polêmica, a prefeitura organizou uma enquete pública para que a população decidisse entre duas opções: manter a estátua completamente branca ou repintá-la de azul. A votação, encerrada no início da noite de quarta-feira (29), contou com 5.571 participantes. Destes, 5.193 (93,2%) votaram a favor do azul, enquanto 378 (6,8%) preferiram a cor branca. Curiosamente, a possibilidade de escolher um tom de pele negro ou mestiço, que poderia representar uma ressignificação simbólica, não foi sequer considerada, limitando as opções.

Em nota, a Prefeitura de Praia Grande explicou que a revitalização da imagem remete ao padrão original da estátua, inaugurada em dezembro de 1976. À época, a escultura de aproximadamente 8 metros foi entregue ao município por uma entidade religiosa inteiramente na cor branca, mantendo-se assim por um longo período. A Prefeitura também destacou que ‘a utilização das cores branca e azul respeita as normas determinadas pelo Superior Órgão de Umbanda’. Dessa forma, podemos entender que a prefeitura, embora responsável pela administração e preservação do patrimônio cultural da cidade, atua dentro de parâmetros e diretrizes estabelecidas por entidades religiosas, como a Umbanda, limitando sua autonomia na escolha das características da estátua.

Essa falta de abertura para uma representação mais diversa revela as barreiras institucionais ainda existentes quando se trata da discussão sobre a cor da pele, especialmente em um processo democrático como uma enquete pública. Isso evidencia que, apesar de algumas limitações na análise do artigo da BBC, a iconografia de Iemanjá continua sendo um tema sensível e politicamente disputado no Brasil.

  1. O Equívoco da Comparação com Shiva, Buda e Jesus

O trecho do artigo da BBC afirma que as divindades africanas foram mais facilmente ressignificadas, enquanto figuras religiosas do Oriente, como Buda e Shiva, teriam mantido sua iconografia original. A conclusão do artigo é a seguinte:

“Todavia, há algo de curioso em tudo isso: não se encontram traduções de divindades de outras culturas tão facilmente quanto as africanas. Nunca se viu uma imagem de Sidarta Gautama, o Buda, enquanto um homem negro, de dreadlocks e brincos nas orelhas. Não se colocam mantos e retiram-se as insígnias hindus de Shiva. Por outro lado, quando se questiona a identidade, tão quanto a cor da pele de Cristo, o clero se levanta em defesa de uma tradição inventada para apagar a existência de um povo.”

Essa comparação ignora um ponto importante: o processo de ressignificação e adaptação de divindades não se limita às figuras africanas, mas ocorreu em várias partes do mundo, incluindo no contexto das religiões orientais. No caso de Shiva e Buda, por exemplo, suas representações mudaram de acordo com as culturas e tradições locais ao longo dos séculos.

No Sudeste Asiático, Buda é frequentemente retratado com feições e características que refletem as etnias e estilos artísticos locais. No Japão, Buda tem traços japoneses e é representado de uma maneira que se alinha com a estética e espiritualidade do país. No Sudeste Asiático, como na Tailândia, Laos e Camboja, Buda também adota características faciais e roupas típicas dessas regiões. Isso demonstra como as representações de Buda foram adaptadas para refletir a diversidade cultural desses países, algo que contraria a ideia de que divindades do Oriente mantiveram sua iconografia original sem mudanças significativas.

No caso de Shiva, ele também é representado de formas distintas em várias regiões. Na Índia, embora a representação clássica de Shiva com tridente e cobra seja prevalente, ele também pode ser visto em formas diferentes, como o “Nataraja”, a divindade dançante, que é frequentemente associada à arte e à filosofia do sul da Índia. Em outras regiões do mundo, como no Nepal, no Sri Lanka, em Bali e até em comunidades hindus da Indonésia, a representação de Shiva pode variar bastante. Por exemplo, no Nepal, onde a tradição hindu se mistura com o budismo tibetano, as representações de Shiva podem incluir influências tibetanas, resultando em uma figura que, embora ainda reconhecível, reflete uma fusão cultural única.

Esse mesmo processo de adaptação também pode ser observado em figuras religiosas ocidentais, como Jesus Cristo. Embora os evangelhos não façam uma descrição detalhada da aparência física de Jesus, seus escritos não se prenderam em especificar características faciais, deixando sua imagem aberta à interpretação. Isso permitiu que, ao longo dos séculos, diversas representações de Jesus surgissem, com traços não exclusivamente europeus, refletindo as etnias e características dos diferentes povos que o veneram. Nos dias de hoje, já existem representações de Jesus com feições afrodescendentes, asiáticas e latino-americanas, desafiando a tradicional iconografia europeia e ampliando a interpretação de sua imagem em um contexto global.

Portanto, a ideia de que apenas as divindades africanas foram reinterpretadas ignora o processo semelhante que ocorreu com figuras religiosas do Oriente, como Shiva e Buda, e até mesmo com figuras ocidentais como Jesus. A história da iconografia religiosa é marcada por um processo contínuo de adaptação e ressignificação, e as divindades orientais, assim como figuras religiosas do cristianismo, não são exceção a isso. Ao não considerar essas mudanças, a análise se torna seletiva e limitada, deixando de reconhecer a complexidade da evolução das representações de figuras religiosas em diferentes partes do mundo.

Conclusão: Para Além das Narrativas Unilaterais

A discussão sobre sincretismo e identidade cultural deve levar em conta múltiplos fatores, sem reduzi-los exclusivamente a relações de poder e dominação. O artigo da BBC falha ao adotar um viés que ignora a complexidade dos processos de troca cultural e a agência dos próprios grupos que reinterpretam suas tradições.

Não se trata de negar que houve racismo e colonialismo na construção da imagem de Iemanjá, mas de reconhecer que processos culturais são mais dinâmicos do que simplesmente resultados de imposição. A mestiçagem cultural não é sinônimo de apagamento, e o sincretismo pode, em muitos casos, ser um espaço de resistência, reinvenção e ampliação simbólica.

Afinal, interpretar sincretismo apenas como dominação é negar a própria potência criativa dos povos que, ao longo da história, ressignificaram suas tradições para garantir sua continuidade. A circularidade cultural, evidenciada por exemplos como a música de Chiquinha Gonzaga e as representações variadas de divindades como Shiva e Buda, mostra que o sincretismo é um fenômeno multifacetado, que envolve tanto a imposição quanto a resistência e a reinvenção.

Portanto, é essencial adotar uma perspectiva mais ampla e inclusiva ao discutir o sincretismo, reconhecendo que ele é um processo dinâmico e contínuo, moldado por múltiplas influências e interações culturais. A imagem de Iemanjá, assim como outras divindades, é resultado de uma complexa rede de significados e ressignificações que refletem a riqueza e a diversidade da cultura brasileira

Referências:

[1] “Iemanjá, a divindade africana que ganhou feição branca no Brasil”, matéria da BBC News, assinada por Edison Veiga. Disponível nesta URL . Acesso em 22. Fev. 2025.

[2] “Nos animalizam e desumanizam o tempo todo”, diz Anielle Franco. Matéria do Congresso em Foco. Disponível nesta URL  Acesso em 22. Fev. 2025.

[3] Imagem de Iemanjá em Praia Grande será pintada de azul por decisão popular com 93,2% dos votos – G1 Santos. Disponível nesta URL . Acesso em 22. Fev. 2025.

 

Imagem de capa: Rio de Janeiro (RJ), 02/02/2025 – Filhos de Gandhi celebra Dia de Iemanjá na zona portuária do Rio de Janeiro. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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