Considerandos sobre a Educação Espírita, por Marcelo Henrique

Tempo de leitura: 7 minutos

Marcelo Henrique

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O Evangelho é perfeitamente adequado para crianças, adolescentes e jovens, como o é para os adultos de qualquer faixa etária. Mas não um evangelho “rançoso” e preconceituoso. Deve ser um “Evangelho aberto”, que permita às pessoas serem elas mesmas, livres e totalmente à vontade para criarem, crescerem e serem felizes.

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Preliminares

Há alguns anos, por e-mail, um jovem nos direcionou um questionamento. Disse ele: “Gostaria de saber o que vocês acham d’O evangelho para a infância e a juventude”. Como a pergunta não estava associada a nenhum contexto específico, nem fornecia maiores detalhes, procuramos responder a mesma considerando a importância do mencionado livro (“O evangelho segundo o Espiritismo”, escrito por Allan Kardec, para o cotidiano de crianças e jovens e, também, para o contexto das atividades espíritas.

Dissemos, inicialmente, que a Educação Espírita merecia uma abordagem mais ampla em relação àquilo que o movimento espírita tem feito dela nos últimos quarenta/cinquenta anos. E a alusão temporal que fiz estaria associada à década de 70 e, principalmente, à deflagração da conhecida “campanha permanente de evangelização espírita infanto-juvenil” (1979), pela Federação Espírita Brasileira (FEB). A diretriz da área responsável pela orientação deste público, definido a partir da faixa etária que compreende crianças, adolescentes e jovens, não me parece ser muito diferente das demais, direcionadas aos adultos. Afinal, optou-se por privilegiar um determinado aspecto (caráter) do Espiritismo, notadamente o religioso, em detrimento dos demais (filosófico e científico). Mais especificamente, optou-se pela configuração de um movimento direcionado ao conteúdo religioso-moral, deixando em segundo plano os elementos associados à Filosofia e à Ciência.

Forçoso é, de início, lembrar a precisa definição do Espiritismo, segundo a configuração dada por Allan Kardec: doutrina espiritualista, com base científica e consequências morais: uma Ciência Filosófica.

Todavia, considerando a nossa posição de maior país espírita no planeta e a influência das diretrizes estabelecidas pela FEB em relação aos demais países onde há organizações similares – inclusive sob a orientação do Conselho Espírita Internacional (CEI), torna-se necessário rever/contextualizar/entender, no tempo, o percurso que desemboca nos dias atuais.

Evangelização OU Educação Espírita?

Curioso é que nas décadas de 50 e 60 e parte da de 70, tivemos muitos estudiosos da Educação Espírita (e não era “evangelização”). Podemos citar Anália Franco, Eurípedes Barsanulfo, Pedro de Camargo (Vinícius) e, é claro, José Herculano Pires. Este último, então, cunhou o termo “Pedagogia Espírita”, para sugerir aos espíritas que se estruturassem/qualificassem nas técnicas para o ensino-aprendizagem do Espiritismo. Todos esses autores, assim como outros, sempre exortaram a Educação Espírita, conceito pluriparticipativo e cúmplice, com a inclusão do educando em todo o processo. Distante, portanto, da cultura de evangelização, que foi, no passado, inclusive, objeto de conceituação como “catecismo espírita”, tendo alguns expoentes espíritas à frente, entre eles Rino Curti e Eliseu Rigonatti.

A Educação Espírita é, pois, inclusiva e cooperativa. Ela parte do próprio universo individual, do ser reencarnado, sua “bagagem” espiritual, considerando aspectos relativos à sua origem familiar, escolaridade, cultura, formação moral, entre outros. Em grupos voltados à atividade infanto-juvenil, o somatório das individualidades é importantíssimo para a definição da “plataforma” de trabalho, do currículo e da bibliografia, assim como para a programação das atividades que proporcionem aos educandos o maior proveito no processo ensino-aprendizagem, descortinando os elementos espirituais e espíritas relacionados à atual encarnação e, também, versando sobre a trajetória espiritual, nas vidas sucessivas e nas vivências como desencarnado.

A Evangelização, ao contrário, não tem este contorno, este colorido e esta proposta. Ela é reducionista. Considera a necessidade da padronização de conceitos e da “catequese espírita”, focada, quase sempre, em aspectos religiosos e estabelecendo conceitos “de fora pra dentro”, numa espécie de pasteurização ou padronização da busca por ser um “Espírito Superior”. E, nesse sentido, a busca se configura como algo artificial, calcado em uma moralidade imposta (ou sugerida), no mesmo padrão das liturgias ou recomendações de outras religiões. Neste “contexto” surgiu, no “Espiritismo à brasileira”, a recomendação (leia-se imposição) da “reforma íntima”, como uma “obrigação” dos espíritas.

Voltando à citada campanha permanente, devemos dizer que ela influenciou muitas gerações e a evangelização continua sendo a tônica do trabalho federativo de Norte a Sul do país. Com isto, perdemos todos! O modelo se distanciou da legítima proposta do PEDAGOGO Allan Kardec (que jamais objetivou instituir um modelo de instrução na forma de catequese ou evangelização a espíritas de qualquer faixa etária). A proposta kardeciana é da dialógica e da dialética, colocando os indivíduos (Espíritos) lado a lado ou frente a frente, horizontalmente, sem qualquer posição de hierarquia ou superioridade (espiritual). Na esteira dessa diretriz, outro PEDAGOGO, Herculano Pires, ao preconizar e estruturar a Educação (Pedagogia) Espírita, procurou ampliar o espectro da formação e da vivência espiritistas, buscando privilegiar o complexo pleno do Espiritismo como Filosofia, Ciência e Moral (Ética).

Mesmo que a tônica ou a ênfase do projeto federativo se apoiasse em Jesus, sua moral, seus ensinos, palavras e feitos, ainda que com alguma referência (expressa ou subliminar) aos princípios fundamentais da Doutrina dos Espíritos, não tem sido possível a visão sistêmica e ampla que a proposta espírita consagra. Lembremos a própria definição de Kardec: “a obra do Espiritismo é de Educação”. Não há educação parcial, que privilegie um só ponto ou visão, deixando os demais para “o futuro”. Em muitas situações, tendo em vista a ambiência das instituições espíritas, “um futuro que nunca chega”. Via de regra, por mais que as pessoas se esforcem, acabamos vendo, tão-somente as “aulinhas”, sob o formato de catecismo, a Evangelização, com poucas e boas exceções. 

Ressalte-se que trabalhar as questões morais não é qualquer defeito ou impropriedade. Longe disso. Afinal, a base ético-moral do Espiritismo perpassa as parábolas e ensinos do homem Jesus de Nazaré. Mas a proposta e sua execução acabam sendo “defeituosas”, pela incompletude, pela parcialidade, pela imperfeição. Temos, como resultado disto, jovens “mancos” que não fizeram (e nem fazem) filosofia, nem, tampouco, ciência, com método e experimentação.

A evasão dos jovens

E o que acontece com tais adolescentes e jovens? A grande maioria deles se “desprende” das instituições com a maturidade (e independência, decorrente). Vão todos “cuidar da vida”, estudar (faculdade ou cursos técnicos), formam famílias e seguem a vida – longe dos centros espíritas.

É preciso investigar o porquê desse afastamento…

Afinal, o problema não está no Evangelho, em si. Vale consignar que ele, o Evangelho – espírita, isto é o conjunto dos atos e das palavras atribuídas ao Rabi, sob a interpretação dada pelo Espiritismo (mormente no próprio “O evangelho segundo o Espiritismo”, assim como nas demais obras de Kardec em que os atos, feitos e ditos de Jesus são mencionados – é importantíssimo, diria mais, essencial à compreensão da proposta espírita para o progresso individual e social. O compêndio destes ensinamentos é, portanto, efetivo e verdadeiro combustível para a construção seja do Homem de Bem seja da Sociedade melhorada (ou seja, regenerada, como está na Escala de Progressão dos Mundos Habitados, contida na teoria espírita).

Assim, com muito carinho e franqueza, eu disse àquele jovem (citado no início deste ensaio): – Fale, sim, do Evangelho, fale dos inúmeros fatos da vida de Jesus, aproxime-se do jovem Yeshua, entusiasme-se com a condição humana do Mestre, que sabia de todas as fraquezas humanas, que acreditava nas pessoas, que procurou construir um movimento de amor e transformação das pessoas e das coletividades. Mas não se esqueça, em termos da lógica kardeciana, dos elementos que formam o conteúdo do Espiritismo, isto é, a fundamentação teórica (filosofia) e o alcance prático, a prova (ciência), além do mero e conhecido viés moral (religioso). Isto, em verdade, é claro, irá requer “educadores” mais preparados do que os “voluntários” que vemos nas casas espíritas, quase sempre pessoas que (muitas vezes) mal sabem a teoria espírita, mas acabam tendo “muito boa-vontade e tempo livre”, o que acaba sendo, para muitos dirigentes, o bastante. Isto quando não se confunde o conteúdo espírita com obras espiritualistas, muitas delas mediúnicas, que são “reconhecidas” ou “validadas” como se fossem Espiritismo.

E prossegui: – Sabe o que acontece depois disso? A instituição espírita acaba “formando” um sem-número de pessoas sem base doutrinária, que mais não fazem senão repetir (decoreba) parábolas, trechos de livros ou respostas contidas nas obras fundamentais espíritas (como a sempre lembrada questão 625 de “O livro dos Espíritos (OLE)” – e, neste caso, interpretando-a equivocadamente, com base em uma tradução errada da resposta). Gente sem “lastro”, embora muito ativos e interessados. Companheiros que tomam os relatos dos romances mediúnicos como realidade para TODOS os Espíritos, deixando de entender que a descrição espiritual contida em tais obras é particular à condição evolutiva de cada ser desencarnado. Em “O céu e o inferno”, Kardec ilustrou alguns destes depoimentos, mas jamais os tomou como regra ou generalidade, aproveitando para discorrer sobre os fundamentos da teoria espírita, rechaçando as opiniões tidas pessoais e primando pelo caráter da universalidade dos ensinos dos espíritos.

Uma observação em relação ao dito acima, sobre a questão 625, de OLE: os espíritas em geral “acham” que Jesus é o Cristo – o mesmo da Cristandade, do Cristianismo, a figura da Santíssima Trindade da Igreja Católica, e não se apercebem disso. Para entender melhor isto, recomendamos outro artigo nosso (https://www.comkardec.net.br/separar-jesus-do-cristo-por-marcelo-henrique/).

Chegamos, assim, a uma época em que, em regra, não se têm argumentos para dialogar com as ciências, não se faz filosofia (que é a própria articulação lógico-racional das ideias) e não se consegue posicionar os postulados espíritas frente a pesquisas/descobertas/teses de diversas áreas. Salvo raríssimas e honrosas exceções. Pessoas que não sabem filosofar, porque não aprenderam a pensar por si próprios e só repetem, feito papagaios, ensinados, alguns chavões ou os próprios princípios básicos da Doutrina. Temos, na generalidade, uma “nova seita cristã”, bem diferente do “Projeto Espírita” (de Kardec), apenas congregando profitentes/adeptos/simpatizantes, a partir do proselitismo dito espírita, que prega, incorretamente, a necessidade de um intervenção da “Espiritualidade Superior” para que o planeta progrida e cultua a predestinação do nosso país, o Brasil, como o “centro do mundo” espírita (um invencionismo totalmente transverso e descabido contido em uma obra mediúnica brasileira, do final da década de 1930).

Finalizei a minha conversação com o jovem, naqueles dias, afirmando: o Evangelho é perfeitamente adequado para crianças, adolescentes e jovens, como o é para os adultos de qualquer faixa etária. Mas não um evangelho “rançoso” e preconceituoso. Deve ser um “Evangelho aberto”, sem dogmas, sem “pseudo-humildade”, sem cobrança de “reforma íntima”, a jato e a qualquer preço. Do contrário, um Evangelho que permita às pessoas serem elas mesmas, livres e totalmente à vontade para criarem, crescerem e serem felizes.

Seria, isso, muito? Continuo entendendo que não!

O tempo passou…

Mais de cinco anos após a minha conversa com aquele jovem, o teor da prosa permanece atual e contemporâneo. Ela “serve” para o momento atual e, mais precisamente, diante do (crescente e assustador) esvaziamento das juventudes e mocidades espíritas, Brasil afora.

E isto me fez escrever este artigo para que ele possa NOS incentivar às (imprescindíveis) mudanças no trato das questões de comunicação social, pedagogia, organização de instituições e atividades espíritas. Tanto em relação a crianças, adolescentes e jovens, como em face dos adultos em geral.

Permaneço acreditando num “movimento espírita diferente”. Que se pudesse (re)começar, começar de novo. Voltar ao começo (Kardec). E, entendamos: Começar pelo começo, não é ler de qualquer jeito ou decorar as obras básicas. É “pensar espiriticamente”. E, neste processo, permitir às pessoas que pensem e, como o próprio Professor francês sempre destacou, não serem “compelidas”, “forçadas”, “obrigadas” a entender postulados, conceitos ou princípios espíritas. Do contrário, deixar que a própria maturidade do ser, ao se perceber, observar o outro e acompanhar o que acontece no mundo, tirasse suas próprias conclusões – estas, é claro, respaldadas no Espiritismo. Pela observação, naturalmente, e pela inteligência aplicada em relação a tudo o que vê.

Será possível?

Imagem de StockSnap por Pixabay

 

 


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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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One thought on “Considerandos sobre a Educação Espírita, por Marcelo Henrique

  1. Compreensão analítica do evangelho, que sai do ultrapassado conceito de “Boa Nova” radicado na religião salvacionista, para penetrar no terreno científico-filosófico do estado de consciência mais avançado do Homem, estruturado nas bases científicas da Física como Ciência Natural. Parece que estou falando uma aberração, “onde se viu misturar Ciência material, envolvendo as leis da Matéria de atração e a Ciência da Alma envolvendo as Leis Morais?!”, exclamarão atônitos os espíritas aterrados à letra que mata. Pois Jesus ensina: “com a mesma medida com que medirdes a seu irmão, vós também sereis medidos”, é a Lei de equivalência de reciprocidade. A Física Material conjugada à Física Espiritual, ambas se completam uma pela outra, uma vez que o Espírito enquanto encarnado na compleição de Homem vive as sensações biofisiológicas dos sentimentos influenciados pelas emissões mentais dos valores morais dele como Alma, as quais encontram no Perispírito semimaterial o fio condutor de seu pensamento e vontade. Em suma, nós somos tocados pelas “sensações” ao expressarmos sentimentos de amor ou de ódio, de simpatia ou de antipatia, etc.